CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Estudo da Parasha da Semana - Cristãos estudando as fontes judaicas
KI TETZEH – Dt 21,10 – 25,19
Para as terceiras e as quartas gerações – Rabbi Jonathan Sacks –
Essays on Ethics – A Weekly Reading of the Jewish Bible. New York: OUPRESS – Maggid,2016,p. 305-311

 

 
Ki Tetzeh

Ki Tetzeh

Existe claramente uma fundamental contradição na Torah. Por um lado, ouvimos, na passagem conhecida como os 13 atributos da Misericórdia, as seguintes palavras:
“O SENHOR, o SENHOR, que conserva a misericórdia por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados, mas não deixa nada impune, castigando a culpa dos pais nos filhos e netos, até a terceira e quarta geração” (Ex 34,7).

A consequência é clara. Os filhos sofrem pelos pecados dos seus pais.

Por outro lado, lemos na Parashat Ki Tetzeh: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos pais: cada um será morto por seu próprio pecado” (Dt 24,16).

No livro dos Reis está igualmente registrado o evento histórico quando este princípio foi comprovado:

“Logo que Amasias assegurou o reinado, matou os oficiais que tinham assassinado seu pai. Não matou, porém, os filhos dos assassinos, segundo a ordem do SENHOR escrita no livro da lei de Moisés: ‘O pai não morrerá em lugar dos filhos, nem os filhos morrerão em lugar do pai, Cada um morrerá pelo seu pecado’” (2Rs 14,5-6).

Existe uma óbvia resolução. A primeira afirmação se refere à justiça divina, “nas mãos do Céu”. A segunda, em Deuteronômio, refere-se à justiça humana como é administrada num tribunal de justiça. Como podem meros mortais decidirem em que medida o crime de uma pessoa foi induzido pela influência de outras? Claramente o processo judicial deve limitar a si mesmo aos fatos observáveis. A pessoa que cometeu o crime é culpada. As pessoas que possam ter moldado o seu caráter não são culpabilizadas.

O problema não é tão simples assim, porque encontramos em Jeremias e Ezequiel, os dois grandes profetas do Exílio no século VI a.C., reafirmando o princípio da responsabilidade individual, de maneiras fortes e surpreendentemente semelhantes. Jeremias afirma:

“Naquele dia ninguém mais dirá: ‘Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram embotados’. Pelo contrário, cada qual morre por seu próprio pecado; fica com os dentes embotados quem comeu as uvas verdes” (Jr 31,29-30).

Ezequiel diz:

“A Palavra do SENHOR veio a mim nestes termos: ‘Que provérbio é este que andais repetindo na terra de Israel: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados?’ Tão certo quanto Eu vivo, declara o Soberano SENHOR, não repetireis mais este provérbio. Todas as vidas me pertencem. Tanto a vida do pai como a vida do filho me pertencem, quem peca é que morrerá” (Ez 18,1-4).

Aqui os profetas não estão falando sobre procedimentos judiciais e responsabilidades legais. Eles estão falando sobre o julgamento divino e justiça. Eles estão dando ao povo a esperança num dos pontos mais críticos da história Judaica: os Babilônios conquistaram e destruíram o Primeiro Templo. As pessoas, sentadas e choradas junto aos rios da Babilônia, podiam ter perdido completamente a esperança. Elas estavam sendo julgadas pelos fracassos dos seus antepassados que tinham trazido a nação para esta desesperada situação, e seu exílio parecia não ter fim no futuro. Ezequiel, em sua visão do vale dos ossos ressecados, ouve Deus relatar o que o povo estava dizendo, “Nossos ossos estão secos, nossa esperança acabou” (Ez 37,11).

Ele e Jeremias estão profetizando contra o desespero. O futuro do povo estava nas suas próprias mãos. Caso eles retornassem a Deus, Deus iria retornar também para eles e trazê-los de volta para a sua terra. A culpa das gerações anteriores não seria anexada a eles.

Mas se é assim mesmo, então as palavras de Jeremias e Ezequiel realmente entram em contradição com a ideia de que Deus pune os pecados até à terceira e quarta geração. Reconhecendo isso, o Talmud faz uma surpreendente afirmação:

“Disse Rabbi Yose ben Hanina: “Nosso mestre Moisés pronunciou quatro (adversas) sentenças em Israel, mas quatro profetas vieram e as revogaram... Moisés disse, “O SENHOR.... pune os filhos e os seus filhos pelo pecado dos pais até à terceira e quarta gerações. Ezequiel veio e declarou: “Aquele que peca é o que irá morrer” (Makkot 24b).
Em geral os sábios rejeitaram a ideia de que os filhos pudessem ser punidos, mesmo pelas mãos do Céu, pelos pecados dos seus pais. Como resultado, eles sistematicamente reinterpretaram cada passagem que lhes parecesse dar uma impressão contrária a isso, de que os filhos seriam de fato punidos pelos pecados dos seus pais. Sua posição geral era:

Os filhos não são mortos pelos pecados cometidos por seus pais? Não está escrito: ‘Visitando a iniquidade dos pais sobre os filhos?’ – Lá existe a referência aos filhos que seguiram as pegadas dos seus pais [literalmente “apreenderam em suas mãos os feitos dos seus pais”, isto quer dizer, cometeram os mesmos pecados por si mesmos] (Berakhot 7a ; Sanhedrin 27b).

Especificamente, eles explicaram esses episódios bíblicos nos quais os filhos foram punidos juntamente com seus pais dizendo que naqueles casos os filhos ‘tinham em suas mãos o poder para protestar/prevenir os seus pais de pecar, mas eles falharam e não o fizeram’ (Sanhedrin 27b; Yalkut Shimoni, I: 290). Como Rambam afirma, quem quer que tenha o poder de prevenir alguém de cometer um pecado, mas não o faz, ele também é tomado pelo pecado (isto é, punido, mantido, responsabilizado) por aquele pecado (Mishneh Torah, Hilkhot Deot 6,7).

Desta forma, a ideia da responsabilidade individual veio mais tarde no Judaísmo, assim como alguns estudiosos indicam? Isso é altamente improvável. Durante a rebelião de Koreh, quando Deus ameaçou destruir o povo, Moisés disse: “Um só homem está pecando e te enfureces contra toda a comunidade?” (Nm 16,22). Quando o povo começou a morrer após Davi ter pecado instituindo um censo, ele rezou para Deus: “Fui eu que pequei, eu cometi a iniquidade! Mas estes, que são como ovelhas, que fizeram? Peço-te que a tua mão se volte contra mim e contra a minha família!” (2Sm 24,17). O princípio da responsabilidade individual é tão básico para o Judaísmo como era para outras culturas no antigo Oriente Próximo.[1]

Em vez disso, o que está em jogo é o profundo entendimento sobre a finalidade da responsabilidade que carregamos se levarmos à sério nossos papeis como pais, vizinhos, cidadãos, e filhos da aliança. 

Judicialmente, somente o criminoso é responsável por seu crime. Mas a Torah nos ensina que nós também somos guardiães do nosso irmão. Nós partilhamos uma responsabilidade coletiva pela saúde moral e espiritual da sociedade. “Todos os Israelitas”, diziam os sábios, “são responsáveis um pelo outro” (Shevuot 39a). Responsabilidade legal é uma coisa, e é relativamente fácil defini-la. Mas responsabilidade moral é algo completamente maior. “Que não se diga nunca: ‘Eu não pequei! Se alguém cometer um pecado, isso é um problema entre Deus e ele’. Isso é contrário ao que ensina a Torah”, afirma Rambam em Sefer HaMitsvot, mandamento positivo 205.

Isso ocorre particularmente quando acontece a relação entre pais e filhos. Abraão foi escolhido, diz a Torah, unicamente “para que ensine seus filhos e sua casa a guardarem os caminhos do Senhor” (Gn 18,19).

A tarefa dos pais de ensinar seus filhos é fundamental no Judaísmo. Isso aparece nos dois primeiros parágrafos do Shemá, como também em várias passagens citadas na seção dos “Quatro Filhos” da Hagadá. Rambam conta como um dos mais graves de todos os pecados – tão sério que Deus não nos dá uma oportunidade para se arrepender – “alguém que vê seu filho cair em maus caminhos e não o impede”. A razão, ele diz, é de que “estando seu filho sob a sua autoridade, tivesse ele o impedido, o filho teria desistido”. Portanto, isso é contabilizado ao pai como se ele tivesse objetivamente causado o seu filho a pecar”.[2]

Assim sendo, começamos a ouvir então a verdade desafiadora dos Treze Atributos da Misericórdia.

Com certeza, nós não somos legalmente responsáveis pelos pecados nem de nossos pais ou dos nossos filhos. Mas de uma maneira mais profunda, o que nós fazemos e como nós vivemos tem um efeito concreto no futuro da terceira e da quarta geração.

Para alguns estudiosos, nos últimos anos da década de 1950 e começo da década de 1960, uma completa série de instituições e de códigos morais começou a se dissolver. Matrimônios foram desvalorizados. Famílias começaram a se fragmentar. Muitas crianças cresceram sem uma associação estável com seus pais biológicos. Novas formas de pobreza infantil começaram a aparecer, assim como sociais disfunções como as drogas e o abuso de álcool, gravidez na adolescência, e crimes e desemprego em áreas não comuns da sociedade.

Com o tempo, uma classe alta se afastou e agora está preparando intensamente seus filhos para grandes realizações, enquanto no outro lado das trilhas as crianças crescem com pouca esperança de sucesso educacional, social e ocupacional.

O que torna esse desenvolvimento tão trágico agora é que o povo esqueceu a bíblica verdade de que o que nós fazemos não afeta somente a nós. Afeta de fato nossos filhos na terceira e quarta geração.

Se deixarmos de honrar nossas responsabilidades como pais, então - embora nenhuma lei nos responsabilize - os filhos da sociedade pagarão o preço. Eles sofrerão por causa dos nossos pecados.

Cf. Ez 18,20; Mq 7,18 e Jo 9,41.

Procurar identificar qual a finalidade da afirmação até a terceira e quarta geração? A responsabilidade é de Deus ou do ser humano sobre as gerações?

Que outras questões surgiram a partir da leitura desses textos? Lembre-se, às vezes as perguntas que fazemos são mais importantes que as respostas que encontramos.


[1] Cf Yehezkel Kaufmann, The Religious of Israel (New York: Schoken, 1972, p, 329-333.
[2] Misheh Torah, Hilkhot Teshuva 4,1: É claro que a referência é para um filho com menos de treze anos.