CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS - Estudo da Parashá da Semana – Cristãos estudando as fontes judaicas
PARASHAT HAAZINU – Dt 32,1 – 32,52 – Rabbi Adin Even-Israel Steinsaltz
Talks on the Parasha. Jerusalem: Shefa Maggid Books, 2015, p. 425 - 429

PARASHA HAAZINU - Dt 32,1 - 32,52

AS CANÇÕES DE MOISÉS

A Canção de Moisés, a qual é a essência da Parashat Haazinu corresponde em muitos aspectos à primeira canção de Moisés – A Canção do Mar (Ex 15). Essas duas canções são similares no sentido que são composições poéticas escritas numa linguagem lírica. Ambas canções exibem imagens poéticas e linguagem destacada, pois como linguagem épica poética, se utilizam de termos especiais e formas antigas.

A distinção dessas duas canções também se utiliza através da expressão halakhica: nenhuma das duas está escrita no rolo da Torah na sequência ordinária de estilo dos textos mas dispostas num modo especial que graficamente sublinha elementos da linha poética, seja através de paralelismos ou de algum outro modo. Esta forma escrita é muito antiga, e está mencionada na Mishná como uma forma própria (Masekhet Soferim 12,7-9).

O destaque dessas canções em comparação com outras seções da Torah, cuja maioria são prosa ou prosa poética, é que elas pretendiam ser uma poesia, cujas características básicas já estão fixadas na Bíblia Hebraica. A maior parte das poesias na Bíblia podem ser encontradas nos últimos livros dos Profetas e em alguns livros dos Escritos, enquanto na Torah somente ocasionalmente existem poemas curtos (como a Canção da Fonte na Parashat Hukkat), mas seções poéticas na Torah são exceções.

Embora a santidade dessas palavras da canção não seja menor do que em outras partes da Torah, as canções se diferenciam porque contém um pessoal elemento. Através da Torah, Moisés age como um escriba, anotando o que diz o Onipotente e Eterno Deus; numa transparência total onde nada é introduzido da sua personalidade individual. Essas palavras da canção, contudo, como outras palavras de profecia escritas sob inspiração divina, contém uma nuance pessoal que tem sua origem também na sua personalidade de profeta. Isso também é comprovado quando dois profetas profetizam o mesmo conteúdo, cada um o faz de um modo e estilo pessoais, assim um certo respeito à unicidade de estilo é a prova da autenticidade da profecia.

De fato, as canções de Moisés contêm um elemento da sua personalidade individual. Portanto, elas expressam não somente um conteúdo específico, mas também sua emoção no momento em que eram recitadas. Então, a diferença entre a Canção do Mar e a Canção de Moisés em Parashat Haazinu permanece presente não somente em relação ao seu conteúdo, mas também na mensagem geral e nas outras mensagens secundárias que elas transmitem.

Seja como for, a Canção do Mar e a Canção de Moisés estão separadas das outras canção na Bíblia Hebraica, como por exemplo a Canção de Débora e a Canção de Davi. Embora essas canções retratem a misericórdia de Deus e seu poder como tema principal, ambas apresentam fundamentos próprios do poeta, enquanto as Canções de Moisés são destituídas de quaisquer elementos explicitamente pessoais. Moisés não fala de si mesmo, nem na Canção do Mar, nem na Canção de Moisés. Aqui, também, ele intenta exercer meramente a função de instrumento, não de poeta.

A CANÇÃO DO MAR E A CANÇÃO DE MOISÉS.

A Canção do Mar é primeiramente uma canção de vitória e de louvor pela salvação de Deus, enquanto a Canção de Moisés sintetiza o passado e aponta para o futuro. A canção de louvor pela vitória no mar primeiramente relaciona-se com o passado, para os eventos que ela menciona, mas também contém desejos e palavras de profecia para o futuro. Ao contrário, enquanto a Canção de Moisés certamente contém referências ao passado, ela visivelmente se refere ao futuro.

As duas canções podem ser distinguidas uma da outra no sentido de que a Canção do Mar é a canção de Moisés para e em nome de todo o Israel, enquanto a Canção de Moisés é a sua mensagem pessoal para o Povo de Israel.

Quando Moisés canta a Canção do Mar, ele a canta junto com todo Israel – “Então Moisés e o Povo de Israel cantaram” (Ex 15,1). Todos eles, de um modo ou outro (cf. Sota 27b), participaram com ele nas palavras de louvor e ação de graças.

Na Canção do Mar existe também outro aspecto que oferece um tom positivo para uma visão de futuro. Agora que a liderança de Moisés é completamente aceita por todo o Israel – como está dito na introdução "O povo acreditou no SENHOR e em Moisés, seu servo” (Ex 14,31) – Moisés está apto para cantar como um representante de Israel.

Contudo, Moisés estava então em companhia de seus confidentes Aarão e Miriam, não somente sua companhia de carne e sangue, mas também de seus colaboradores e assistentes, e eles também participaram nessa canção.

Sobretudo, a Canção do Mar era o início de uma estrada que deveria ser uma ascensão crescente, da Montanha de Deus para a Terra Santa, um caminho cheio de esperança caminho que era para ser sem preocupação ou medo.

A Canção de Moisés é uma canção no final da estrada. Ela é cantada no final dos quarenta anos de peregrinação no deserto, no momento quando Moisés transmite para Israel suas palavras de despedida. Portanto, essa canção é o testamento de Moisés e um guia para o futuro.

Parashat Haazinu contém um véu de tristeza. Embora Moisés completamente aceita os julgamento divino, ele não está alegre com isso; como está dito anteriormente em Deuteronômio, ele gostaria de ter terminado a sua vida na Terra de Israel.
Além disso, quase toda a Canção de Moisés fala sobre o futuro, não somente pelos eventos que irão acontecer, mas também sobre o curso da história.
Esta canção é igualmente uma profecia e a nomeação de testemunhas – céus e terra – que atestam suas palavras para sempre. Já que a canção contém palavras de profecia, pela sua própria natureza se torna o apelo solitário do profeta para o povo. O profeta não fala “em nome de todo o Israel”, mas em nome de Deus. O profeta toma uma parte entre si mesmo e o povo; ele não fala por eles, mas para eles.

UMA CANÇÃO DE DESAFIO

Mas as diferenças entre as canções, diferenças de tom e de contexto, nada são comparadas com a principal diferença, a diferença de conteúdo. A Canção do Mar é louvor, e como toda canção de louvor, é essencialmente uma recitação das coisas boas. Ao contrário, a Canção de Moisés é uma canção de desafio: tem uma visão que está baseada em aceitar que o povo não será capaz de permanecer firme na estrada de um tranquilo progresso. Existem muitíssimos fatores, de vários ângulos, que podem levar a quedas e falhas. Apesar do povo Judeu possuir um sentido de memória nacional melhor que qualquer outra nação, contudo, existe o esquecimento que resulta da distância no tempo e o envolvimento com outras realidades. Em tempos de sucesso, existe uma tendência em direção a autossatisfação.

A inclinação para o individual, e certamente de uma nação inteira, é alcançar a normalização, uma vida normal sem demandas e requisitos especiais. A Canção de Moisés fala não somente da possibilidade de tal inclinação tomando conta, mas também, e principalmente, do fato de que Deus não permitirá que Israel se torne apenas uma das nações.

Aqui vemos uma mesma ideia presente no Livro de Ezequiel, onde o profeta fala do desejo do povo de ser como todas as outras nações, e as duras palavras de Deus como resposta: “Por minha vida, declara o SENHOR Deus, é com mão forte, com braço estendido, que derramarei meu furor, que reinarei sobre vocês” (Ez 20,33). Toda a Canção de Moisés é uma repetição, de várias formas, deste motivo: a queda e a subida, o sofrimento e as punições, mas também sobre a realidade de que Deus conduzirá Seu povo por um caminho repleto de sofrimento e dor, no “deserto dos povos” (Ex 20,35), e no fim irá também salvá-los e redimi-los. Não fala somente sobre as promessas de redenção, mas também, mais de uma vez, menciona vingança.

Moisés transmite esta canção para Israel e os instrui para lembrar dela e para tê-la na memória. De fato, alguns hoje afirmam que é um preceito especial aprender essa canção e ensiná-la aos outros.

Para ter certeza, a Torah inteira comunica a ideia desta canção de diversas maneiras. O principal conteúdo da canção é afirmado de maneira destacada em duas reprovações de Moisés, as quais contêm profecias de ira para o futuro. Contudo, a vantagem da canção é precisamente de que ela é uma canção. A Prosa talvez esteja armazenada em nossa memória, e de tempos em tempos volta à nossa consciência. A Canção, porém, não é somente lembrada pelo texto pela sua leitura, mas também quando ela é cantada.

Apesar de Moisés comunicar essa mensagem de diversos modos, aqui ele dá um explícito mandamento: “Agora, escrevei para vós este cântico, ensinai-o para o Povo de Israel; ponde-o em sua boca, a fim de que este cântico Me sirva de testemunho contra o Povo de Israel” (Dt 31,19).

Esta Canção não deve somente ser escrita num rolo, o qual é aberto de tempos em tempos; ela deve estar nas suas bocas, para que assim essas palavras – justamente por causa da sua poética e por vezes obscura linguagem – devesse ecoar e ser lembrada.

Lição aprendida com a pandemia
Francisco recordou as restrições vividas por todos causada pela pandemia e a lição que podemos aprender com a situação vivida:
“Sentimos a falta de nossos entes mais queridos e amigos; o medo do contágio nos fez lembrar de nossa precariedade. Sabemos – continua o Papa – o que alguns de vocês, assim como muitos outros idosos, experimentam diariamente. Espero tanto que este período nos ajude a compreender que, muito mais do que ocupar espaço, é necessário não perder o tempo que nos é dado; que nos ajude a desfrutar da beleza do encontro com o outro, para curar o vírus da autossuficiência. Não esqueçamos esta lição.”

A homilia do Papa Francisco reforça ou contraria a explicação do Rabino Adin Steinsaltz quando diz que “existe o esquecimento que resulta da distância no tempo e o envolvimento com outras realidades. Em tempos de sucesso, existe uma tendência em direção a autossatisfação”?

Quais outras impressões o comentário sobre a Canção Haazinu despertou? Quais questões poderiam ser levantadas sobre a importância de lembrar essa Canção para não a esquecer?

Outras citações para ajudar na reflexão:

Mt 26,13; Rm 15,5; 2Pd 1,13; 2Pd 3,1


 [1] O Papa aos sacerdotes idosos: A fragilidade pode nos aperfeiçoar e santificar. Cf. https://comshalom.org/o-papa-aos-sacerdotes-idosos-a-fragilidade-pode-nos-aperfeicoar-e-santificar/