PARASHAT VAYELECH Dt 299 3130

CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS - Estudo da Parashá da Semana – Cristãos estudando as fontes judaicas - PARASHAT VAYELEKH – Dt 30,21 – 31,30 – Rabbi Adin Even-Israel Steinsaltz Talks on the Parasha. Jerusalem: Shefa Maggid Books, 2015, p. 413 - 593

No começo da parashá, Moises chama Josué e transfere para ele a liderança do Povo Judeu, e a partir deste momento, Josué é o líder de Israel na prática.
Contudo, Moisés é ainda a figura central nas próximas parashot porque elas formam como que uma festiva conclusão sobre seu período de liderança, uma conclusão cuja essência é a canção em Parashat Haazinu e a bênção na Parashat Vezot HaBerakha.

Além dos dois preceitos indicados na Parashat Vayelekh – o preceito sobre reunir o povo inteiro a cada sete anos para ouvir a leitura da Torah pelo rei de Israel e o preceito de escrever a Torah – esta parashá é composta de dois assuntos centrais. O primeiro, no início da parashá é uma descrição da entrada do povo dentro da Terra de Israel: “3 O SENHOR, teu Deus, será Ele que atravessará diante de ti; ele exterminará essas nações diante de ti e as possuirás. Josué , ele mesmo, atravessará diante de ti, como o SENHOR falou. 4 O SENHOR lhes fará como fez a Seon e a Og, reis dos amorreus, e a terra deles, exterminando-os. 5 O SENHOR os entregará diante de vós, e lhes fareis conforme cada ordem que vos ordenei” (Dt 31,3-5).

O segundo tema é a conclusão de Moisés: “27 porque eu conheço tua rebeldia e tua dura cerviz. Eis que hoje, mesmo que eu esteja ainda vivo convosco, já fostes rebeldes com o SENHOR! Quanto mais o sereis após a minha morte?” (Dt 31,27).

Esta conclusão é intrigante. Ao longo do livro do Deuteronômio, Moisés expõe diante do Povo de Israel tudo o que ele tem de dizer, todas as suas palavras de encorajamento, as bênçãos e as maldições, e assim por diante.

Ao concluir, ele sintetiza dizendo: “Eu disse tudo isso porque vocês tem de estar conscientes disso, mas eu conheço vocês bem: Por quarenta anos vocês não ouviram minhas palavras, quanto mais após a minha morte”. Nós esperaríamos que Moisés terminasse seu discurso de outra forma e não com tão rude declaração. “29 De fato, sei que depois de minha morte certamente vos corrompereis e vos desviareis do caminho que vos ordenei; o mal vos encontrará nos dias futuros, porque fareis o mal aos olhos do SENHOR, irritando-o com a obra de vossas mãos” (Dt 31,29). Por que Moisés deixa a sua mensagem de forma tão pessimista? Por que ele termina desse jeito?

EU VOU SUPORTAR, EU VOU SOFRER

Existem muitas definições para o termo “otimista”. Existem pessoas que, pela sua própria natureza, sempre esperam pelo melhor. Há pessoas que vão além; elas procuram pelo lado bom de tudo.

Há um aspecto bom para essa tendência: Tal pessoa sabe que as coisas irão sair sempre bem, uma atitude que seguramente oferece um grande encorajamento em certos momentos de sua vida. Por outro lado, as pessoas normalmente não conseguem manter esse nível de otimismo. Elas inevitavelmente chegam a um ponto de ruptura e não podem continuar com tal atitude otimista da vida.

A abordagem otimista – assumir que tudo irá sempre ocorrer bem – é um modo de construção de um ambiente protetor para si mesmo. Mesmo que alguém veja outra pessoa parecer ser uma pessoa ruim, ele com segurança afirma que essa pessoa tem um coração de ouro. Leva-se uma vida para descobrir, mas no fim das contas, todos são bons em seu interior.

Uma criança que chegasse na escola com tais atitudes rapidamente seria alvo de perseguição. Na prática, aqueles que cresceram num ambiente protetor, irão no fim chegar num ponto de ruptura. Quando se dispõem a viver fora do seu ambiente protetor, elas se mostram muito vulneráveis, e algumas vezes não conseguem se recuperar de suas feridas.

A Torah não nos encoraja a viver num mundo otimista assim. A Torah começa com a determinação que “a inclinação do coração do ser humano é má desde sua juventude” (Gn 8,21) e conclui com “Eu sei que vocês se tornarão corruptos” (Dt 31,29). Através desse comentário de Gênesis até o Deuteronômio, o mundo é descrito tanto interna, como externamente difícil, e a este respeito a Torah não poupa nem mesmo os justos (tzadikim).

“Eu sei que vocês se corromperão” é uma tragédia: por quarenta anos no deserto, Moisés constantemente para trazer o Povo de Israel para mais perto de Deus, mas mesmo no fim de sua vida, ele é forçado a admitir que em poucos anos, todo seu trabalho terá sido em vão.

O mesmo ocorrerá também na morte de Josué, ainda havia pessoas que testemunharam a mão orientadora da Providência de Deus em cada ida e vinda, e ainda depois de tudo, ele também, admite, “Eu sei que vocês se tornarão corruptos”.

Esta afirmação pode ser entendida como resultado de pessimismo ou desespero, mas na verdade Moisés está providenciando para que o Povo Judeu tenha a capacidade de suportar dificuldades no futuro. Se não tivéssemos ouvido suas palavras, pareceria para nós que tudo está realmente à beira do colapso. Quando após um bom estado de coisas tenha acontecido e se segue uma queda, costuma parecer que foi uma tentativa fracassada, e que o verdadeiro fim esteja perto. Frequentemente, algo momentâneo e positivo acontece, mas logo depois existe um sentimento que falhou na tentativa de levantar as esperanças.

Aqui vemos Moisés tentar, por mais difícil que seja, em preparar o povo com antecedência para a descida. Quando Moisés diz “Eu sei que vocês se corromperão”, isso não está significando uma ameaça, mas prepará-los para a realidade que a vida é cheia de altos e baixos. Sabemos claramente que Moisés não é o tipo de pessoas que vê o mundo com óculos cor-de-rosa, mas isso também é essencialmente, uma forma de otimismo. Contudo, a Torah é otimista, e nisso mostra-nos a possibilidade de retificação, mas ao mesmo tempo, deixa claro o quanto desafiador isso pode ser.

Quando Moisés se despede do povo, ele conta para as pessoas que até agora tudo ocorreu facilmente. O sentimento predominante é que eles irão entrar na Terra de Israel e a vida será simples dali para frente. Mas o mundo não é feito desse jeito, explica Moisés, e que devemos nos preparar para as dificuldades e para as quedas também.

Parashat Vayelekh afirma, “e a Torah estará ali para você como uma testemunha” (Dt 31,26). Moisés aqui declara, “Eu disse que vai haver subidas e quedas; eu não estou prometendo que de agora em diante tudo será melhor. Contudo, eu prometo a vocês que o final será bom, mas vocês devem estar conscientes que o caminho pode ser difícil”. Saber disso não diminui a dificuldade para as pessoas, mas não é o modo de Moisés dizer “eu te avisei”. A afirmação de Moisés também torna possível para as pessoas irem adiante mesmo nos períodos de dificuldade quando eles vierem.

O Holocausto foi um período horrível para o Povo Judeu inteiro, mas o golpe mais severo foi para aqueles que não acreditavam que tal coisa podia acontecer. As pessoas na Europa Ocidental foram atingidas duas vezes: Elas foram atingidas fisicamente, por morte e degradação, e elas foram atingidas espiritualmente, porque elas não podiam imaginar que o mundo de Beethoven e gentileza poderiam praticar tais atrocidades. Quando alguém tem claro que uma coisa não pode acontecer, o golpe é inexplicável. Isso não torna menos doloroso golpe quando alguém o sabe por antecedência, mas se alguém está preparado para o golpe, esse se torna capaz de suportá-lo.

Isso pode ser visto em todas as áreas. O exército vitorioso numa guerra é o exército que é capaz de ultrapassar as dificuldades. No mundo dos negócios também, as companhias que são capazes de sobreviver em tempos difíceis são as companhias que se prepararam com antecedência, e dessa forma foram capazes de absorver as perdas.

Na vida, existem subidas, quedas e problemas. Ninguém quer sofrer com eles, mas acontecem, e devemos estar preparados para eles. A intenção de Moisés aqui não é de prever os acontecimentos ruins ou anular suas declarações anteriores, mas antes preparar as pessoas para uma queda e para avisá-los de que se eles não se prepararem, o mundo inteiro deles irá entrar em colapso.

SEJA FORTE E TENHA CORAGEM

Na Torah, existem muitos mandamentos que, embora não estejam contados entre os 613 preceitos, devemos cumpri-los com seriedade. Um desses mandamentos é a expressão repetida três vezes em nossa parashá e várias vezes na mesma conexão com o início do livro de Josué – “Seja forte e de boa coragem”.

A mesma ideia aparece no Salmo 27: “Espera no SENHOR! Sê forte, para que teu coração resista! Espera no SENHOR”. Antes do problema começar: “Espera no SENHOR!”. Depois que os problemas terminaram: “Espera no SENHOR”. E no meio, “Sê forte, para que teu coração resista!”. (outra tradução: tenha coragem)
O mandamento para ter coragem significa não se deixar sacudir pelos problemas e não se deixar quebrar pelos problemas, porque quebrar-se diante dos problemas é a coisa mais perigosa que alguém pode fazer. Pode haver guerra e outros problemas, mas o maior perigo – na guerra e na vida – é quando alguém se torna incapaz de sofrer um golpe e perseverar.

O repetido e enfático uso da expressão “Seja forte e tenha coragem” é um chamado não somente para a coragem no sentido comum, mas também para um esforço perseverante para agarrar-se firmemente a sua fé. O segredo para servir a Deus é a resiliência: “Sete vezes cai o justo – tzadik –, mas se levanta” (Pr 24,16). O que caracteriza o tzadik não é que ele não caia, mas de que após a queda ele se levanta. Os maus caem uma vez e terminam assim; eles ficam no chão. Eles não necessariamente começam maus, mas eles terminam assim, já que eles não se levantam. Alguém que “seja forte e que tenha coragem” pode suportar quase tudo. Ele pode realizar muito e ter sucesso em tudo o que ele faz. Mas quem não é “forte e de boa coragem” não tem resiliência.

O Talmud afirma:
“Nos tempos futuros, o Eterno Deus, Bendito seja, irá trazer a má inclinação e matá-la na presença dos justos e dos maus. Para os justos ela terá a aparência de uma alta montanha, e para os maus terá a aparência de um fio de cabelo. Ambos, o primeiro e o último irão chorar. Os justos irão chorar dizendo “Como fomos capazes de ultrapassar uma alta montanha?” Os maus, também, irão chorar, dizendo, “Como é que nós fomos incapazes de conquistar este fio de cabelo?” (Sukka 52a).

Uma das explicações sobre essa passagem é que todas as pessoas passam por provações, e cada provação é um fio de cabelo. A pessoa justa passa sobre um fio de cabelo e depois outro e depois sobre outro até, no final da sua vida, um inteira montanha de cabelo foi acumulada. Ao contrário, a pessoa malvada fica presa no primeiro fio de cabelo. Quando as suas vidas são expostas para eles, aos justos lhes é mostrado a montanha da qual eles foram capazes de ultrapassar, enquanto aos malvados lhes é mostrado somente o primeiro fio de cabelo que os parou logo de início.

Durante este período, que nos aproximamos de Rosh HaShana, muitos fazem compromissos de todos os tipos. Alguns se comprometem em corrigirem alguma falha de seu caráter, enquanto outros acrescentam restrições e observâncias adicionais. Todos, ao menos por um minuto ou dois, é sério nas suas intenções. Mas o ano os arrasta, e pode arrastar também para baixo uma pessoa. O Talmud afirma que um ano contém 364 dias, além do Yom Kippur, e que corresponde ao valor numérico da palavra hasatan (Satã), que está à espreita e, vestido como todo mundo, circula entre nós.

Aqueles que tomam decisões e falham em cumpri-las devem tomar coragem. “Sejam fortes e tenham coragem!” deveria ser entendido no sentido de “embora possa cair, ele não está totalmente abatido” (Sl 37,24). Cair faz parte da vida, mas ser abatido não precisa ser. Essa é a mensagem que Moisés transmite no final da parashá: Venha o que vier, mesmo que alguém caia, “ele não está totalmente abatido”.

Quando alguém comete um pecado, ele está sujeito a se quebrar, dilacerado e sem coragem. Se isso acontece, e como resultado, o pecador desmorona, ele não pode mais retornar. Todos os pecados podem ser retificados, mandamentos positivos e mandamentos negativos também; mas quando uma pessoa falha e desmorona, não há retificação.

Parashat Vayelekh não é otimista no sentido comum da palavra; não há demonstração de força e poder, cantos e gritos de alegria. Pelo contrário, está dito que “você irá se corromper”. Lemos isso antes e depois de Rosh HaShana, e significa que devemos ser capazes de continuar mesmo depois “você irá se corromper”.

Havia um tzadik que trabalhou como comerciante por muitos anos, e nos seus negócios experimentou altos e baixos. Ele dizia: “Se você perdeu nos negócios, você perdeu dinheiro; nada aconteceu. Mas se você perde a sua coragem, você perdeu tudo”.

Assim também, Parashat Vayelekh diz que se você cai ou não, mesmo se você se torna corrupto ou não, não importa o que aconteça na sua vida – “Seja forte e tenha boa coragem!”.

Quando cristãos estudam as fontes judaicas:

Papa: o pecador pode se tornar santo; o corrupto, não (homilia Casa Santa Marta 08/02/2018)
O Papa Francisco falou de Davi e Salomão e advertiu para os riscos do "enfraquecimento do coração". Davi é santo, mesmo que tenha sido um pecador. O grande Salomão é um corrupto e o Senhor o rejeitou.

De Salomão não conhecemos que tenha cometido grandes pecados, era sempre equilibrado, enquanto de Davi sabemos que teve uma vida difícil, que foi um pecador.
E mesmo assim Davi é santo e de Salomão se diz que o seu coração se “desviou do Senhor” para seguir outros deuses. Ele que havia sido louvado pelo Senhor quando pediu a prudência para governar ao invés das riquezas. Como se explica isso, se questionou o Papa. É porque Davi sabe que pecou e toda vez pede perdão, enquanto Salomão, de que todos falavam bem e que também a Rainha de Sabá quis encontrá-lo, tinha se afastado do Senhor, mas sem perceber.

E aqui está o problema do enfraquecimento do coração. Quando o coração começa a se enfraquecer, não é como uma situação de pecado: você comete um pecado e percebe imediatamente: “Eu cometi este pecado”, é claro. O enfraquecimento do coração é um caminho lento, que escorrego pouco a pouco, pouco a pouco, pouco a pouco… E Salomão, adormecido na sua glória, na sua fama, começou a percorrer este caminho.

Paradoxalmente, “é melhor a clareza de um pecado do que o enfraquecimento do coração”, afirmou Francisco. O grande Rei Salomão “acabou corrupto: tranquilamente corrupto, porque seu coração tinha se enfraquecido.”

E um homem e uma mulher com o coração fraco, ou enfraquecido, é uma mulher, um homem derrotado. Este é o processo de muitos cristãos, muitos de nós. “Não, eu não cometo pecados graves.” Mas como é o seu coração? É forte? Permanece fiel ao Senhor ou você escorrega lentamente?

A homilia do Papa Francisco reforça ou contraria a explicação do Rabino Adin Steinsaltz sobre “Sê forte e tenha coragem” diante da frase de Moisés que “vocês irão se corromper”?