Dos sacrifícios a oferta da sua vida

Dos sacrifícios à oferta da sua vida – Como Deus abre a porta da fé – D. Jean-Marie Lustiger
(LUSTIGER, Jean-Marie. Comment Dieu ouvre la porte de la foi. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, p. 53-56)

“O bezerro de ouro está sempre de pé”: essa famosa expressão de Fausto de Charles Gounod nada perdeu de sua força para descrever o lugar da idolatria em nossa civilização. É por isso que a revelação de Deus, o Verdadeiro, o Único, o Vivente, permanece mais do que nunca necessária para “dessacralizar” os ídolos e assim tornar disponível a capacidade religiosa do ser humano.

Um somente exemplo bastará: o sacrifício. É uma realidade tão antiga quanto a humanidade ela mesma. Os ser humanos são como que impulsionados a realizar um culto às “forças superiores”, algo para além de si mesmos em direção à qual se abre o infinito de seus desejos e que preencham as projeções das suas pulsões. Se oferecerá também às divindades aquilo que é precioso, mas também criaturas vivas, animais, ou até mesmo seres humanos.

“As mãos cheias de sangue” ou “o coração contrito” ?

Em Israel, o culto oferecido a Deus, o Único e o Verdadeiro, conduz a transformar radicalmente esses ritos de oblação e de imolação. Os sacrifícios não são mais os ritos destinados para a proteção das forças maléficas e apaziguar a fúria das divindades ciumentas, mas cada sacrifício é uma oração de reconhecimento e um ato de amor para com Deus, único Mestre do ser humano. O gesto bíblico do sacrifício expressa antes de tudo a conversão do coração na liberdade de orientar sua vida para com o Pai dos Céus.

Repetidamente, Deus lembra a seu povo pela boca dos profetas: “Que farei com o incenso importado de Sabá?!... Quando eu os fiz sair vossos pais da terra do Egito, Eu nada lhes ordenei como holocausto nem sacrifício. Eu somente vos disse isso: “Escutai a minha voz e Eu me tornarei vosso Deus. E vós vos tornarão um povo para Mim. Segui corretamente o caminho que vos indico, e vós sereis felizes” (Jr 6,20; 7,22-23). Ou ainda: “Para que a multidão dos vossos sacrifícios? Os holocaustos de carneiros, a gordura dos bezerros, estou farto... Vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos. Purificai-vos. Deixem de fazer o mal” (Is 1,11.15-16; Am 5,22).

A permanente tentação de uma regressão

O salmista, que compreendeu bem isso, canta: “O sacrifício desejado por Deus, é um espírito quebrantado. Deus, Tu não rejeitas um coração quebrantado que se dirige para Ti” (Sl 51,19). Portanto, o rito sacrificial, que é universal, encontra na Revelação Bíblica uma dimensão nova, até se tornar esse sacrifício do coração, louvor que jorra sobre os lábios, oferenda livre de si mesmo, mas também ação de graças do povo reunido por Deus.

Israel foi constantemente tentado de retornar à idolatria, de ceder à fascinação dos deuses que o ser humano fabrica, preferindo diante da dura emancipação dos filhos de Israel essa escravidão aparentemente mais fácil. Mistério da liberdade humana, que Deus chama para ser curada e se desdobrar em amor e verdade, mas que se esquiva disso e confia em si mesma... O paganismo está sempre presente como uma tentação no coração de Israel, e incansavelmente os profetas repetiram a necessidade da luta e as exigências da fidelidade a Deus, o Único que o ser humano deve amar, adorar e servir. Esse culto “em Espírito e em Verdade” (Jo 4,23), Jesus viverá em plenitude pela oferenda da sua vida, cumprindo a oração do salmista: “Tu não desejas nem sacrifício nem oferta, Tu me abriste as orelhas: Tu não ordenas nem holocausto nem vítima expiatória. Então eu disse: Eis-me aqui, ó Deus, para fazer tua vontade” (Sl 40,7; Hb 10,5-9).

“Mamon”

Jesus denuncia com força aquilo que o ser humano coloca no lugar de Deus: “Ninguém pode servir a dois senhores, pois ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à Mamon (riqueza)” (Mt 6,24). Essa última palavra aramaica é traduzida habitualmente por “prata”. Mas Jesus não ataca ao sistema monetário nem defendo um retorno à troca... Jesus utiliza precisamente aquele ridículo apelido de “Mamon de injustiça” para designar aquilo que o homem faz da prata quando ele a coloca no lugar de Deus.

No Sermão da Montanha, Jesus ensina que a luta contra a idolatria chama a uma ruptura sem concessão: para responder ao amor de Deus por um ato livre, o ser humano deve literalmente separar-se dos ídolos dos quais ele se tornou escravo. O Cristo sobre a Cruz cumpre a libertação dos seres humanos. Ele os liberta da servidão deles e lhes entrega a vida fazendo morrer em seu corpo tudo aquilo que é pecado. De agora em diante, eles são as pedras vivas da Igreja, assembleia de Deus encarregada de seu louvor nesse mundo ao longo dos séculos. Eles podem, portanto, render o culto em “Espírito e em Verdade”. Por sua vez, os povos pagão que receberão a Boa Nova deverão entrar nesse combate espiritual para serem libertados dos ídolos pela graça do Cristo.