66 – As Festas da Torah: O Shabat de Deus

O shabat de Deus

Os ritos ou os mandamentos são o próprio coração da vida judaica, sem a prática deles e do estudo sobre eles, o Judaísmo não teria conseguido vencer as tormentas da sua história. Vamos conhecer as solenidades que marcam o ritmo do ano judaico.

É no final do primeiro capítulo do livro do Gênesis que o sétimo dia é mencionado como o Shabat de Deus. A tradução "repouso" apresenta-nos uma dificuldade teológica: qual seria a natureza do cansaço divino? Se for verdade que a Bíblia utiliza uma linguagem antropomórfica para descrever a ação do Criador, esse vocabulário não pode mesmo assim diminuir a concepção que fazemos dos atributos divinos. De fato, Shabat significa "cessar", como está escrito em Gn 8,22, quando o Eterno Deus anuncia a Noé: "Enquanto a terra existir, semente e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite, jamais hão de cessar".

Mas do que se trata esse cessar? Durante seis dias[1] a tradição rabínica vê como maasé berechit "a obra do início", quando o Criador agiu sozinho para construir os arredores para o ser humano. Toda a estrutura física do Universo é estabelecida neste tempo da origem. O milagre da Criação que se repete nos oferece a natureza, tal qual nos percebemos através dos nossos sentidos imediatos, e tal como a ciência a conhece pela sua investigação.

Mas quando Adão surgiu, Deus cessou o seu trabalho. Isso não significa dizer que Ele abandonou a terra, mas que Ele não introduziu mais novas leis. Essa estabilidade garantirá a liberdade do ser humano, capaz de escolher com toda a sua consciência.

A escolha da expressão maase berechit não é gratuita, mas ela provém de uma análise de uma passagem difícil da Bíblia na qual Deus é apresentado como Aquele que começa. No sétimo dia, o Criador "conclui" o começo, isto quer dizer, sua parte de esforço. O mundo não está terminado, ele permanece ainda com escândalos teológicos (doenças, sofrimentos, catástrofes), mas ele está agora dentro da História, a fim de que o ser humano possa por sua vontade dar o seu acabamento na Criação introduzindo nela a ordem moral revelada por Deus. Também para a Bíblia, Deus está presente no mundo pela vida e a lei que Ele oferece, mas sem impor sua vontade às criaturas. De onde vem então a necessidade da parceria e da Aliança.

A partir de então, o Shabat de Deus possui uma dimensão universal, tão universais como as leis da gravidade ou das estruturas do DNA, quando esse "sétimo dia" é na verdade o tempo da História[2].

Sob o ponto de vista monoteísta, a humanidade toda inteira se encontra em referência com o Shabat. Se mais tarde, Israel recebe esse dia como instituição social, é com a finalidade de construir sua consciência espiritual. Mas em termos absolutos, cada vez que dois homens, duas comunidades, dois povos forem capazes de viver juntos, sem indiferença, nem hegemonia, isso significa que cada um é capaz de fazer Shabat em relação ao outro[3], capazes cada um de usar sua liberdade com sabedoria. O fundamentalismo seja ele religioso ou político, tornaram-se nessa sua lógica, sinônimos de profanação do Shabat e, portanto, também destruidores do mundo, como a radioatividade ou a poluição atmosférica.

Compreende-se então porque o Shabat é abençoado e santificado (Gn 2,3), isto quer dizer, reconhecido como fonte a mais para ser e para distinguir, diferenciar por sua elevação moral e espiritual[4]. Pelo respeito ao Shabat, um dia é oferecido onde a evidência de Deus será mais perceptível, onde um sentido poderá aparecer a fim de não se desequilibrar para o absurdo e o trágico. A esperança do mundo é colocada dessa forma no próprio coração da existência.

O Quarto Mandamento nos lembra: "Lembre-se do dia de Shabat para santificá-lo. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, E no sétimo dia, Shabat, (Cessação, interrupção, parada) para o Eterno, teu Deus"[5].

Entre os seiscentos e treze preceitos, o Shabat aparece imediatamente gravado sobre as tábuas da Aliança. Se a finalidade da saída do Egito era a de chegar em Canaã (Êxodo capítulo 4) a fim de constituir um "reino de sacerdotes", essa sociedade humana, tão confrontada com as realidades políticas, econômicas e sociais, e iluminada pela palavra divina, compreende que o trabalho seja resultado desse decreto. Oferecendo o Shabat à humanidade, Deus fundamenta o direito ao trabalho. Se não existe trabalho, não existe o Shabat, se não existe o Shabat, não existe o trabalho. Em outras palavras, se o investimento no mundo apela para um sentido, o sentido deve alimentar uma ação e não permanecer etéreo. Que valor poderia ter um sétimo dia para um miserável, sem teto, para quem todos os dias da semana desfiam na morosidade e na pobreza extrema. O fiel monoteísta viaja, portanto entre o céu e a terra, entre a idéia e a realidade, sem jamais desequilibrar num extremo. Nós nos deparamos sempre com o desafio do Hebreu que é o "passante", que vive num movimento permanente da consciência que passa sempre de uma margem para a outra. Sedentário e nômade ao mesmo tempo.

Não trabalhar no Shabat significa para os filhos de Israel que eles estavam santificados, distinguidos para testemunhar o Criador.  Preparar a casa para receber o Shabat foi comparado a uma rainha que cada membro da família se apressa e se prepara para receber. O Shabat começa na sexta-feira ao entardecer do sol, pois o dia no calendário hebraico começa no entardecer do dia anterior. É uma honra da esposa de iluminar a sua casa com ao menos duas velas para marcar a entrada do sétimo dia. Na sinagoga, a comunidade canta as músicas tradicionais como o Lekha Dodi, poema litúrgico composto no século XVI, em Safed por Salomão Halevi Elkabetz e que relembra que o Shabat é o tempo privilegiado do encontro de Deus com Israel.

Em casa, a família reunida em torno da mesa recita o Kiddouch "a santificação" que proclama a criação do mundo e lembra a saída do Egito. O Shabat se tornou, portanto memória das origens e experiência da libertação do ser humano. O pai da família após essa curta oração, bebe o vinho e o distribui com os presentes, depois ele abençoa o Eterno, segurando dois pães trançados, memória da dupla porção de maná que caía nos campos dos Hebreus, para depois distribuir um pedaço a cada um. Durante a refeição também se discute a parasha que será lida no dia seguinte na sinagoga.

Na manhã do Shabat (sábado) a comunidade se reúne na sinagoga para a oração. Essa oração se divide em três momentos distintos: a oração da manhã, a leitura da Torah e a recitação de moussaf ou oração suplementar. Retornando depois para suas casas, a família toma a sua segunda refeição. O Shabat é consagrado ao repouso físico, mas, sobretudo também dedicado ao estudo. Todos os que estiveram sobrecarregados durante a semana não tiveram tempo de abrir um livro da Bíblia, do Talmud ou do Midrash para aprofundar seus conhecimentos, e em muitas comunidades o rabino organiza cursos onde o rolo da Torah é de novo retirado e uma parte da parasha da semana seguinte é lido para lembrar que os Shabat formam uma grande corrente no coração do ano judaico.


[1] Yom pode significar "dia" em relação à noite, ou "jornada" de 24 horas, ou mesmo mil anos como no Salmo 19. A fé judaica não se enfraquece por causa da datação da terra em milhões de anos, pois a Bílbia não é um livro científico. O que importa para a fé é reconhecer a existência de um Criador.
[2] Cf. Haddad, Philippe. Pour expliquer le judaïsme a mes amis. Paris: Éditions In Press, 2013. p. 122.
[3] Lembremos que os dois trechos bíblicos que seguem a criação do Shabat são referentes a "Adão e Eva" e "Caim e Abel". Ora, esses dois episódios são descritos como fracassos, pois existe para esses protagonistas uma vontade de hegemonia sobre o ambiente e finalmente a recusa do espírito do Shabat.
[4] Santificar o Shabat quer significar distinguir, separar.
[5] Êxodo 20, 8-11.