O LIVRO DOS NÚMEROS – A PRESENÇA DE DEUS NUM POVO PEREGRINO
CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS – CURSO DE APROFUNDAMENTO 2020
Fernando Gross – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

1. Loucura e Civilização: O Caso da suspeita de adultério: como restaurar a confiança?  
2. A questão do Nazir – a abstinência é uma garantia de santidade?

1. Loucura e Civilização[1]

Duas narrativas sobre as Mulheres

A primeira narrativa do Sefer Bamidbar, o Livro dos Números sobre as mulheres é o doloroso caso de Sotah. É uma narrativa legal, jurídica, descrevendo o destino da mulher cuja lealdade é colocada em dúvida por seu marido. Sotah provocou desconfiança e dúvida: ela é submetida a um “teste” para resolver a suspeita que paira sobre ela.

No final do livro de Números, outra narrativa jurídica também fala sobre as mulheres, cinco irmãs, que clama por seu direito de herança na terra de seu pai, na ausência de herdeiros homens. As duas histórias são bem diferentes. Elas de certa forma estruturam por um lado o Livro de Números também. Ambas histórias e suas mulheres, pela sua própria existência, levantam uma questão, uma dúvida, que traz consigo subversivas implicações. Ambas histórias fazem essas mulheres se aproximarem em “direção mais perto do sagrado”, uma sutil linha entre aproximação e intromissão. Assim como vimos já a aproximação estranha de Nadab e Abiú, filhos de Aarão , mortos por causa desse aproximar-se indevido do sagrado, que tinha a punição da morte (cf. Nm 1,51; 3,10.38; 18,7). Nos relatos das cinco irmãs e o da mulher em Sotah os verbos usados em Hebraico são os mesmos. Mas iremos aprofundar hoje a primeira história.

O sacerdote traz a mulher para mais perto, e ele a coloca diante da presença de Deus no átrio do Tabernáculo. Até a hora do juramento, a mulher nada diz e nada faz. Seu único momento “de ação”, o qual a precipita para outras ações, é o momento da desgraça: ela trai o marido e se torna infiel (tisteh – cf. Nm 5,12) – daí o nome Sotah. Mas mesmo nesse momento, está em jogo a parte da perspectiva do marido dela e sua incerteza.

Vejamos algumas implicações da narrativa de Sotah. Entre a primeira história dessa mulher supostamente infiel e a história das cinco irmãs no final do livro, se estruturam alguns motivos centrais que dizem respeito diretamente à turbulenta história do povo no deserto.

Talvez o traço mais importante no episódio de Sotah é a sua ambiguidade. A situação do marido, o aparente assunto da passagem bíblica, é o da dúvida: se a sua esposa é culpada ou se ela é inocente. Os dois cenários opostos são decretados nos versículos de abertura: ou ela de fato cometeu o adultério – sem testemunhas, imperceptível – e o ciúme então do esposo é justo, ou seu ciúme é injustificável. Somente nesse caso, onde sua culpa ou sua inocência não podem ser decidida de outra forma, é que o teste de Sotah acontece. Neste caso, a ajuda divina é solicitada, e aquele outro princípio comum que decide através de um devido processo, com testemunhas e regras próprios, é nesse excepcional caso, deixado à parte.

O ciúme do marido é claro, embora sua provocação seja ambígua. O teste de Sotah acontece quando não é constatado por testemunhas e o que transparece na intimidade. O ritual de Sotah é um dispositivo extralegal instituído para colocar fim a algo que é um tormento, na verdade uma situação insustentável.
Segundo as leis rabínicas, somente se ambos marido e esposa estiverem interessados em restaurar o matrimônio, é que esse ritual acontece. Qualquer um dos cônjuges pode optar por não participar e aceitar a opção do divórcio. A dúvida que move o marido diz respeito aos seus interesses íntimos, e o seu ciúme é levado muito a sério pela Torah e pela sociedade.

Os Rabinos, na sua elaboração complexa do teste de Sotah, ressaltam que o crime de adultério é um grave pecado contra Deus, tanto quanto o é contra o marido. Rashi afirma: “Sua traição ocorre contra “dois homens” – o “homem de guerra” nos céus e o seu marido embaixo”[2]. A mulher rompeu sua fidelidade com o marido dela e com o “outro” ish (Homem) acima.

Possíveis soluções
Existe um aspecto especial nesse caso, quando o veredicto vem da parte de Deus. Veredictos desse tipo também eram usados em outras culturas. O aspecto milagroso desse ritual se encontra no coração de uma surpreendente discussão feita por Ramban[3] (Nm 5,20). Este ritual, escreve ele, é único em toda a Torah precisamente porque coloca em discussão um sinal milagroso da parte de Deus, no lugar de um processo jurídico. A incerteza na vida privada do casal vai ser iluminada por um milagre institucionalizado. Isto deve ser entendido, contudo, como resposta a um pedido nacional, público: a manutenção da santidade da nação. Assim sendo, isso deveria ser levado em conta na medida da alta estatura moral do povo: como um “sinal da honra de Israel”.
Como base de sua interpretação, Ramban cita a Mishnah[4] em Sotah que descreve o fim da prática de Sotah numa época em que o adultério se tornou comum[5].
Para entender melhor vejamos outra passagem da Mishnah que afirma: 

“Quando o mundanismo se tornou comum, a lei se tornou distorcida e o comportamento corrompido... Quando o favoritismo na corte se tornou comum, quando o “sem temor de ninguém, porque a Deus pertence o juízo”(Dt 1,17) deixou de ser vivenciado, e “você não será parcial no julgamento” (Dt 1,17) não mais esteve presente, e o jugo do Céu se quebrou, e o jugo dos seres humanos o substituiu.”[6]

A Mishnah descreve um mundo de costumes alterados que afeta a validade dos preceitos bíblicos. A Palavra de Deus “cessa” de exercer pressão, as pessoas não acham mais os preceitos bíblicos acreditáveis quando os tabus não são mais observados. Poderia a Palavra de Deus se tornar irrelevante para uma nova raça de seres humanos? A lei teria perdido seu poder de persuasão?

Aprofundando a Sotah. Loucura ou rebeldia?

Imediatamente depois da narrativa de Sotah, a lei do Nazireato é introduzida. Rashi relembra o que diz o Talmud:
Por que a seção que trata sobre o Nazireato está colocada em justaposição com a de Sotah? Para lhe dizer que quem já viu uma Sotah em sua desgraça deveria se abster de vinho porque isso pode levar ao adultério.[7]

A conexão entre essas duas seções é um momento de visão: ver a Sotah na sua desgraça deveria levar alguém a se comprometer em se abster de álcool. O impacto visual da sua degradação é tão impressionante que ela deveria tomar medidas de prevenção para assegurar a si mesmo que nunca daria tal passo em direção ao adultério. Já que os embriagados facilmente perdem o controle, temos diante de nós uma solução racional com a medida da prevenção.

Por outro lado, esse conselho representa apenas uma relação defensiva que caracteriza em parte o “declive escorregadio” do ponto de vista do adultério. O que aconteceu de fato com a mulher adúltera? Ruína, prejuízo, estragos, deterioração?

O livro dos Provérbios nos apresenta alguns indícios descritos em termos que indicam qual seria o núcleo misterioso no íntimo desse ato do adultério: o vazio no seu coração. Seu ato não é somente desconhecido pela sociedade, mas é essencialmente desconhecido, talvez até para si mesma:

(APRESENTAÇÃO DOS SLIDES – SOTAH NO LIVRO DOS PROVÉRBIOS)

A VISÃO DO MIDRASH

Várias passagens do Midrash falam do aspecto traumático do adultério:

“O olho do adúltero observa a escuridão e diz: ‘Ninguém vê!’ e cobre o rosto” ( 24,15). O adúltero diz: Ninguém sabe, além de mim. Mas os olhos de Deus percorrem o mundo inteiro e Ele diz: ‘Pode alguém esconder a si mesmo em lugares secretos que Eu não possa vê-lo? Não sou Eu que preencho todos os céus e a terra? diz Deus’” (Jr 23,24). Esse é o modo dos pecadores agirem: eles esperam pela hora da escuridão, a hora do crepúsculo, assim ninguém irá vê-lo.... “Da mesma forma ladrões esperam pela hora da escuridão, como está dito: ‘invade nas trevas as casas” (Jó 24,16). Assim também está dito: “Ai daqueles que tentam esconder-se do SENHOR, fazendo segredo daquilo que planeja, eles tramam no escuro! (Is 29,15).

Primeiro, o midrash zomba do adúltero por imaginar que é invisível diante de Deus. Citando os versículos bíblicos, o midrash prova triunfalmente que é impossível esconder-se de Deus. Mas existe um refrão que penetra para além da zombaria: o adúltero espera pela escuridão, o segredo é essencial para o seu desejo.

APAGANDO O NOME DE DEUS

Vejamos com atenção agora para a beleza da construção literária na narrativa bíblica:

“Quando tiver dado de beber a água e quando esta água portadora de maldição e de amargura tiver penetrado nela” (Nm 5,27).

Chegamos ao momento crítico do ritual quando a Sotah irá beber “as águas amargas”. Esta água contém a tinta dissolvida que uma vez inscreveu o Nome de Deus. A ideia por detrás de tal ato – apagando o Nome de Deus – é profundamente detestável. É, na verdade, o tema da proibição bíblica[8]. Pois destruir o Nome de Deus é contribuir para a desconstrução do sagrado no mundo[9]. Dissolvendo o Nome de Deus, portanto, o sacerdote estava transgredindo um mandamento bíblico.

Mas toda ambiguidade deve ser resolvida, também em nossas vidas. Bebendo da água, se ela for inocente, à custa de apagar o Nome de Deus, ela será merecedora de restaurar o seu matrimônio, diz o Talmud[10]. Pois o matrimônio deve estar baseado na confiança, as suspeitas devem ser resolvidas; as extremas medidas são justificadas para esse fim. Se ela for culpada, a clareza é igualmente necessária, então o matrimônio não deve continuar.

UMA TERCEIRA POSSIBILIDADE?

Foi enfatizado o problema da dúvida, da incerteza, ambiguidade que formam o contexto para o procedimento extremo da provação de Sotah. Mas brota de uma discussão do Talmud que além da inocência ou da culpa, existe também uma terceira, escondida possibilidade: ela pode confessar. No Talmud e na literatura midráshica, o sacerdote de fato insiste para que ela confesse:
“E o sacerdote dirá então : ‘se ninguém dormiu contigo...’”: isto nos ensina que ele deveria fazer um apelo na defesa dela. Ele conta para ela um texto da Agadah, lembrando acontecimentos nas Sagradas Escrituras, expondo a ela texto como “aquilo que os sábios testemunham” (Jó 15,18). E conta para ele coisas que nem ela e nenhuma das famílias da casa de seu pai mereciam escutar: por exemplo, o caso de Ruben e Bila e o caso de Judah e Tamar. Em ambos os casos, ele dirá para ela, eles confessaram seus feitos sem passar por vergonha. O que aconteceu com eles no final? Eles mereceram a vida no mundo que há de vir[11]. A confissão nesse caso, acaba por restituir de algum modo, o Nome de Deus que por causas das suas transgressões tinha sido apagado.

GRAVADO NOS OSSOS

O que a confissão poderia significar para o transgressor é o tema de uma passagem fundamental de Rabbi Nahman de Breslav:

Os pecados de um ser humano estão sobre os seus ossos, como está dito em Ezequiel 32,27: “suas iniquidades estão sobre os seus ossos”. Cada pecado tem uma particular combinação de letras com as quais eles são então gravados, numa combinação maligna, nos ossos do pecador – isto traz uma particular linguagem de proibição no reino da impureza, que irá se vingar contra ele... Através da confissão verbal essas letras gravadas deixam os ossos e compõem as palavras de confissão. Pois existe uma linguagem emitida pelos ossos, como está escrito no Salmo 35,10: “Digam todos os meus ossos: “SENHOR, quem é semelhante a Ti?”. E a confissão destrói a estrutura da maligna combinação de letras, e as reconstrói numa benigna combinação, criando o reino da santidade.[12]

A confissão, portanto, é uma forma de linguagem que tem uma força dinâmica – para destruir e reconstruir. Tem um poder contagioso de reorganizar a vida novamente, de melhor organização das letras. A confissão transforma a realidade. A linguagem pronunciada pela Sotah em meio a esse livro do Midbar/Deserto onde Deus fala (Medaber), pode nos ensinar a falar (dibbur) e reorganizar a vida novamente.
2. A questão do Nazir – a abstinência é uma garantia de santidade?[13]

A Torah indica responsabilidades únicas à algumas categorias de pessoas que compõem o povo de Israel: os chefes das Tribos, os Sacerdotes, os Carregadores do antigo Michan (“o Santuário”). Essas funções são definidas por Deus e são hereditárias. Mas, pelo contrário, a Torah nos indica que qualquer pessoa, homem ou mulher, pode escolher livremente se tornar um Nazir.

Tornar-se um Nazir é assumir um compromisso que dura ao menos trinta dias. Durante esse período, a pessoa não cortará seus cabelos, não consumirá nada que tenha saído da vinha (uvas, vinho, vinagre).

Como o sacerdote, um Nazir não deve jamais entrar em contato com o corpo de uma pessoa morta. Segundo a Torah “durante o período do Nazirato, a pessoa está consagrada a Deus”(Nm 6,8).

Os comentadores da tradição rabínica de Israel não coincidem sobre o papel do Nazir e desta instituição. Nada menos que nove capítulos e 70 seções da Mishná, assim como também 130 páginas da Guemará, formando o conjunto do Talmud, apresentam considerações variadas e algumas contraditórias sobre esse tema. Hoje igualmente, alguns intérpretes da Torah consideram de forma positiva a Torat Nazir, o código comportamental do Nazir, outros são contra, mesmo se atualmente uma ínfima minoria o coloque em prática.

Para alguns sábios os “Nazirim” são como os “médicos da alma humana”. Considerados como modelos de abstinência, assim eles ensinam sobre a moderação. Outros descrevem o comportamento ideal dessa minoria. Essas pessoas se colocam à parte da sociedade, não procurando bens materiais além do necessário para uma vida simples, ignoram e desconsideram os “prazeres da vida”. Vão à procura da solidão e da santidade, escolhendo ir além daquilo que é pedido nos mandamentos da Torah. Agindo assim, os Nazirim pelo seu comportamento exemplar se tornam mestres respeitados e exemplos de inspiração.

Outros comentadores os criticam. Sobre o Judaísmo e Ascetismo afirmam eles que mandamento algum dentre os 613, sejam positivos ou negativos, esses que definem as normas chamadas “ortodoxas” da vida judaica, foram compreendidas pelos rabinos para introduzir uma forma de ascetismo ou uma ideia de mortificação... Existe somente um dia público de jejum importante – o de Yom Kippour – um dia solene consagrado à introspecção.... É preciso notar que nos votos do Nazir, nunca se fala da questão do celibato. A renúncia à vida sexual normal nunca foi considerada como uma virtude.[14]

Rambam (Maimônides)[15] se opõe igualmente às escolhas de abstinência e da renúncia. “A Torah, escreveu ele, não recomenda mortificação alguma do corpo. Seu propósito é que deve se seguir a natureza tomando um caminho mediano. Deve-se comer com moderação e viver uma existência correta e fiel no meio da sociedade e não num deserto ou nas montanhas. Nossa Tradição, sustentou Maimônides, “nos proíbe de nos privarmos de toda alegria da vida autorizada na Torah” (Chemoné Perakim et Mishne Torah, Déot 3,1)

Mestres do Hassidismo também emitiram reservas quanto à prática do Nazir, considerados como uma vida de renúncia e abstinência. Segundo o ensinamento deles, nascemos para apreciar a vida, respirar as sutis essências das flores, saborear as delícias da natureza, se maravilhar diante da majestade das altas montanhas, gozar do frescor das florestas e saciar-se dos desejos sexuais como parte misteriosa da relação amorosa. Para eles, apreciar a vida era um modo de render graças a Deus. Rabbi Pinhas Shapiro dizia que “a alegria expia as faltas, pois é um dom de Deus”. E Rabbi Moché Leib de Sassov explicava o versículo: “ A alegria é melhor do que as lágrimas...” dizendo que “ela abre as portas do céu”.

Para esses mestres era certa a afirmação de que “cada um deve trazer três coisas em seu coração: o amor a Deus, o amor a Israel e o amor da Torah. Ninguém deve privilegiar as práticas da ascese, É suficiente que cada um compreenda essas três coisas pois aí se encontra a santidade” (Sefer haHassidout, p.60a).

Aprofundar portanto, as questões relativas ao Nazir, permite situar-nos não somente sobre o tema das privações mas também sobre o tema das alegrias que a vida por nos oferecer, e também sobre a questão fundamental da gestão de nossas necessidades e da matriz dos nossos desejos afim de saborear a simples felicidade de viver, de beneficiar nossa comunidade e de servir a Deus”.

Para continuar a reflexão...

No dia 16 de maio de 2020 o Papa Francisco falou sobre o mundanismo também....
O Papa se perguntou: “Qual é o espírito do mundo? O que é esse mundanismo, capaz de odiar, de destruir Jesus e seus discípulos, aliás, de corrompê-los e de corromper a Igreja?”. “O mundanismo é uma proposta de vida”, “é uma cultura, é uma cultura do efêmero, uma cultura do aparecer, da maquiagem, uma cultura ‘do hoje sim, amanhã não, amanhã sim e hoje não’. Há valores superficiais. Uma cultura que não sabe o que é fidelidade, porque muda segundo as circunstâncias, negocia tudo. Essa é a cultura mundana, a cultura dos mundanismos”. E Jesus reza “para que o Pai nos defenda dessa cultura do mundanismo. É uma cultura do descartável”, segundo a conveniência. “É uma cultura sem fidelidade” e é “um modo de viver também de muitos que se dizem cristãos. São cristãos, mas são mundanos”.

1. Podemos nós também viver sem fidelidade nossa vida cristã, podemos nós também vivendo o mundanismo sermos adúlteros com a Aliança de fé e de amor que professamos e realizamos com Deus?
2. Observe as figuras de Jesus com a mulher adúltera, narradas em Jo 8, 1-11. Ele também acabou criando “uma terceira alternativa” para a vida daquela mulher, conseguindo a “confissão” de cada um dos presentes, a começar pelos mais velhos (Jo 8,9)? Comente a respeito.

CONFISSAO 1 CONFISSAO 2

3. Uma confissão dupla de Adão e Eva talvez teria mudado o ritmo e o rumo da História da Salvação?

ADAO E EVA

Ressonâncias do Nazirato de Nm 6 com o Cristianismo[16]

Os Padres da Igreja se ativeram mais a figuras como Sansão, mas fornecem pontos interessantes também sobre Nm 6,1-21. Tertuliano (Contro Marcione 4,23,10) utiliza os versículos 6-7 para explicar o comportamento de Jesus em Lc 9,59-60: “Então disse a outro: ‘Segue-me.’ Este respondeu: ‘Permite-me primeiro ir enterrar meu pai’. Jesus respondeu: ‘Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai e anuncia o Reino de Deus’”: quem se dedica a Deus não pode apegar-se à alma defunta alguma. Metódio de Olimpo (Il Simposio 5,5) dele nos dá uma interpretação simbólica, contrapondo a vinha malvada, da qual o livro de Números nos exorta a mantermo-nos longe, de outra vinha, aquela vinha boa, a de Cristo.

De modo particular, o voto aqui descrito, que é o maior entre os possíveis, seria aquele voto da castidade. Nota-se em geral entre os Padres da Igreja, na dificuldade de fundamentar o Nazirato a uma prática efetiva por parte de fiéis cristãos, a procura de uma interpretação simbólica que desse respaldo a um voto de total dedicação a Deus não vinculado a preceitos em si mesmo. De fato Orígenes (Omelie su Numeri 24,2) menciona o Nazireu como símbolo daquele que se oferece inteiramente a si mesmo a Deus, e nisso torna-se figura do perfeito imitator Christi.


[1] ZORNBERG, Avivah Gottlieb. Bewilderments – Reflections on the Book of Numbers. New York: Schocken Books, 2015, p. 31-62.
[2] Comentário de Rashi sobre Nm 5,12.
[3] Ramban, abreviação de Rabi Moshe ben Nachman, ou Nachmânides (1194-1270), um rabino catalão, médico e grande conhecedor da Torah.
[4] Mishnah, segundo a maioria dos mestres judeus, não é um código, mas uma coletânea de referência. A Mishnah, coleção fundamental da Tradição de Israel, foi composta e publicada oralmente. A redação oral da Mishnah foi realizada em Yavneh após a destruição do segundo Templo, a partir do ano 70 d.C.; sua publicação oral, entregue a um colégio de repetidores, foi feita no inicio do terceiro século (219 d.C.).
[5] Tahnud pabilônia Sota 47a.
[6] Tahnud pabilônia Sota 47b.
[7] Rashi sobre Números 6,2.
[8] Cf. Deuterozaimio 12,2-4 "
[9] Cf. Rashi para lisim 5.
[10]Talmud BAsmtgg Chulin 141a.
[11] Bamidbar Rabbah 9,14.
[12] Likkutei Moharan 4,5.
[13] FIELDS, Harvey J. La Torch commentée pour notre temps. 3. Les No4res. Paris: Le Passeur Editeur, 2017, p. 41-46.
[14] 14 Abba kagj Siker. Where Judaism Differed. Macmillan, New York, 1956, p. 198-199
[15] Rambam é o nome dado ao grande pensador Moshe ben Maimon ("Maimónides"). Nasceu em 1135 em Córdoba e faleceu em 1204 no Egito. Foi um judeu sefaS, filósofo e astrônomo e se tornou um dos mais importantes e influentes professores de Torah e de ciências fisicas da Idade Média. Seus quatorze livros de comentários da Torah (Mishozeh Torah) e a sua obra o Guia dos Perplexos ainda continuam importantes hoje na codificação das leis do uttind. É chamado a Grande Águia em reconhecimento ao seu entendimento e exposição da Torah Oral.
[16] GARGIULO, Massimo. Il Nazireato (Nm 6,1-8) in: MORSELLI, Marco Cassuto; MICHELINI, Giulio. La Bibbia dell'Amicizia Brani della Torah/Pentateuco commentati da ebrei e cristiani. Milano: Edizioni San Paolo, 2019, p. 296.