A IMPORTANCIA DAS FONTES JUDAICAS PARA UM CRISTÃO PARTE II Pierre Lenhardt NDS

A IMPORTÂNCIA DAS FONTES JUDAICAS PARA UM CRISTÃO[1] (PARTE II)

PIERRE LENHARDT, NDS

2 - A Torá Una do Deus Uno

A Antiga Aliança jamais tendo sido revogada, eu recebo na Única Aliança, já Novo e Eterna em Jesus Cristo, a Torá Una que me vem do Deus Um para os Judeus. Esta Torá Una é diversa. Nela, segundo a Tradição de Israel, eu distingo a Tradição oral do Judaísmo (Mishnah), a Escritura (Miqra), o Talmud (Midrash), a Halakhah, a Hagadah.[2]18 Como cristão, segundo a Tradição de minha Igreja, eu situo nesta maravilhosa Unidade da Palavra de Deus, a coletânea, hoje inteiramente escrita, dos testemunhos orais e escritos sobre Jesus Cristo. No Novo Testamento que veio a ser Escritura, eu acrescento tudo o que na Tradição da Igreja me faz conhecer Jesus Cristo. Eu sei e creio que Ele é a Palavra de Deus feito carne, o Verbo abreviado que recapitula e unifica todas as palavras da Torá do Deus Um.[3]19 Na minha frequência às fontes judaicas só posso partir Dele e só posso chegar a Ele.

3 - O vai e vem do Cristianismo ao Judaísmo e do Judaísmo ao Cristianismo

Eu parto necessariamente do Cristianismo. Estudar as fontes judaicas, calando a minha fé cristã, seria mais que uma tolice. Isto seria um erro e um erro muito mais grave que acreditaria assim estudar o Judaísmo de maneira científica. Na realidade, nenhuma pesquisa científica pode se passar de hipótese. A questão é a de escolher uma boa hipótese, e de preferência a melhor hipótese. Minha hipótese é que a fé cristã é coerente com a Palavra de Deus que me vem das fontes judaicas, assim como das fontes especificamente cristãs.

Para explorar as riquezas da minha fé cristã, eu parto desta fé e notadamente das palavras, hoje escritas no Novo Testamento, que leio na fé. Eu sei que minha fé e o Novo Testamento estão ligados em Jesus Cristo, no Deus Uno, com o Judaísmo e com as suas fontes. Nestas fontes, eu busco então o que me faz melhor conhecer a Deus e a mim mesmo. Este processo, que vai do Cristianismo ao Judaísmo, pode ser denominado “analítico”.

Há outro processo, que vai do Judaísmo ao Cristianismo, que eu denominarei “sintético”, por falta de encontrar um termo melhor.[4]20 Este processo, inseparável do primeiro, ocorre no encontro com os judeus e na escuta do Judaísmo tais como eles se definem e expressam a si mesmos. A Igreja convida a uma semelhante escuta, que deve respeitar os judeus tais como são e como querem permanecer.[5]21 Neste processo, eu não posso evidentemente fazer a abstração de minha fé cristã, mas devo evitar limitar a minha escuta ao que no Judaísmo já está em ressonância com a minha fé. O Judaísmo não se reduz ao que minha fé cristã, tal como é, me prepara para receber dele.[6]22 Sendo outro e mais amplo que minha escuta cristã, o Judaísmo, ouvido no que ele diz de si mesmo, de Deus, da humanidade e do mundo, esclarece a minha fé sobre aspectos ignorados e insuspeitos do patrimônio comum ao Judaísmo e ao Cristianismo, ainda insuficientemente conhecido. Neste processo, eu escuto os judeus, estudo com eles e em sua escola. Eu creio perceber qualquer coisa do que eles denominam a alegria da Torá, da qual eu falei mais acima. Tento compreender o que é para eles a Torá e como eles a vivem. Partilho de sua oração, sabendo que eu não rezo a sua oração em seu lugar. Mas provando que a sua oração, no que ela diz, ressoa em mim segundo a minha fé cristã. O grito de alegria Hallelu-Yah, por exemplo, significa para os judeus e para mim: “Hallelu-Yah! Louvai aquele cujo nome é Yah! (Sl 113,1). “Louvai, servos do Senhor, e não mais escravos do Faraó!”[7]23 Eu não posso deixar de provar, no contato da alegria pascal judaica do Hallelu-Yah, a alegria pascal cristã da ressurreição de Jesus Cristo. É assim que as fontes judaicas esclarecem profundamente a minha fé cristã. Escutar os judeus tais como se definem me faz descobrir com frequência o que estava latente, até escondido e às vezes até oculto, na minha vida cristã.

O processo “sintético” não leva necessária e automaticamente a ouvir uma ressonância cristã. Isto me mantém, como cristão, na obrigação de estudar as fontes judaicas tais como são, sem relação consciente com a fé cristã. Isto me obriga a aceitar que os judeus, que vivem destas fontes e que são seus interpretes e utilizadores legítimos e competentes, não creiam em Jesus Cristo. Isto também me persuade, em todo caso, que Jesus Cristo e o Cristianismo são mais amplos do que os cristãos disseram até o presente. Porém, quando uma ressonância é percebida, minha vida cristã recebe uma confirmação alegre que advém mais da evidência do que da prova.

No lado a lado com outros cristãos e cristãs, irmãs e irmãos de Nossa Senhora de Sion, colegas professores do Centro Saint Pierre de Sion (Ratisbonne), há muito tempo e intensamente pratiquei o vai e vem do qual acabo de falar, operando-o para fazer o inventário do patrimônio comum aos judeus e aos cristãos como a Igreja Católica o pede.[8]24 Eu apresentarei, em resumo, alguns exemplos para dar uma ideia da riqueza deste patrimônio e da importância das fontes judaicas a fim de cernir os contornos. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, se estas linhas pudessem se prolongar ao infinito.

Eu preciso que não tratarei da crença judaica e cristã num Messias pessoal. Esta crença é fundamental, certamente, para um cristão, pois ele crê em Jesus Cristo, isto é: em Jesus Messias, Messias para os Judeus e para os Gentios. Mas ele não está seguro de que ela faça parte do patrimônio comum, em razão da grande variedade de opiniões judaicas sobre o Messias e sobre o messianismo. Sem dúvida há profundas ressonâncias entre o messianismo e a escatologia ensinadas pela liturgia judaica e o que diz a Igreja de Jesus Cristo (Messias) na sua oração e na sua teologia.[9]25 Mas uma divergência fundamental impede o funcionamento de um vai e vem entre Judaísmo e Cristianismo sobre a questão de Jesus Messias, em razão das diferentes posições quanto à ressurreição. Para os judeus, que não creem na ressurreição de Jesus, o Jesus dos cristãos, morto na cruz, não pode ser o Messias. Para os cristãos, Jesus Cristo ressuscitado, porque venceu a morte, pode ser o Messias e o é na verdade malgrado o retardar das realizações messiânicas que se espera dele. Esta divergência entre judeus e cristãos não permite então que se possa falar do patrimônio comum sobre a questão do Messias.


[1] Artigo publicado nos Cahiers Ratisbonne, nº 7, 1999, p. 102-126. Estas linhas retomam e completam meu artigo “Tradition d’Israel et Nouveau Testament”, BIB (Bulletin d´Information Biblique) nº 46, 1996, p. 11-15. Elas transformam igualmente o texto de uma conferência dada recentemente a um grupo de cristãos reunidos em Jerusalém para uma semana de estudos organizada pelo SIDIC de Roma. Eu modifico este título, que se torna: “The importance of Jewish sources for Christians”. Eu indico através disso a minha intenção de expor livremente as minhas convicções pessoais. [Nota do tradutor: Este artigo será o sétimo capítulo do livro: Pierre LENHARDT, À escuta de Israel, na Igreja, Tomo II, Coleção “Judaísmo e Cristianismo” nº XVI]. Tradução: Faustino Tonini, NDS.

[2] Sifre sobre Dt 32,2, p. 339.

[3] Cf. H. De Lubac, Exégèse médiévale (Exegese Medieval), Segunda Parte, I, p. 181-197; L’Écriture dans la Tradition (A Escritura na Tradição), p. 232-246.

[4] Gostaria de encontrar algo melhor do que os adjetivos ‘ “analítico” e “sintético” para distinguir os dois processos.

[5] Eu evoco aqui as recomendações feitas pela Igreja Católica nas Orientações e Sugestões da Comissão da Santa Sé para as relações religiosas com o Judaísmo (01/12/1974), retomadas nas Notas da mesma Comissão (24/06/1985), “Considerações preliminares”, 3 e 4.

[6] Na minha dissertação para a obtenção do mestrado (licença canônica) de teologia, eu assinalei o que me pareceu errôneo da maneira pela qual H. Urs von Balthasar emprega a noção de “estrutura cristológica de Israel” para tratar de certos aspectos do Judaísmo. O risco é de projetar sobre o Judaísmo estruturas que só são imperfeitamente cristológicas, para não dizer, em certos casos, falsamente cristológicas, na medida em que a fé dos cristãos ainda não tinha chegado à compreensão total da revelação crística. É assim que H. Urs von Balthazar falsamente julgou o sionismo. Cf.: Einsame Zweisprache, Koln-Olten, Jakob Hegner, 1958, p. 113-114 e minha dissertação: Conditions de légitimité d’un témoignage Chrétien auprés des juifs (Condições de legitimidade de um testemunho Cristão junto aos Judeus), ICP, 1970, p. 81 e nota 137, assim como a publicação alemã desta dissertação: Auftrag und Unmöglichkeit eines legitimen christlichen Zeugnisses gegenüber den Juden, Berlim, Selbstverlag Institut Kirche und Judentum, 1980, p. 104-105, nota 137.

[7] T.J. Pessahim 5,5 32 c.

[8] Notas da Comissão..., “Considerações preliminares” 1 e 3.

[9] Cf. acima, capítulo 2: “A Escatologia na liturgia de Israel”. Eu só preciso aqui o ensinamento dado pela décima quinta bênção da oração comunitária, da qual eu já falei. Esta bênção termina assim: “Bendito és Tu, Senhor, que faz crescer o chifre da salvação”. Esta fórmula inabitual só se encontra no evangelho de Lucas 1,69. Outros índices apontam para uma origem judeu-cristã. Tal como é, a bênção corresponde bem à situação dos cristãos que certamente têm em Jesus Cristo o início real da salvação, mas que pedem que cresça a força (o cifre) desta salvação. Um pedido análogo é feito pela Igreja para os judeus na oração da Sexta-feira Santa: “Conduzi à plenitude da redenção o primeiro povo da Aliança”. A Igreja, como Israel, permanece no “ainda não” ainda que tenha realmente entrado no “agora”. Esta décima quinta bênção poderia ser cristã. As outras bênçãos «messiânicas» da oração comunitária, seguramente menos próximas do Cristianismo, nada têm que seja incompatível com a fé cristã e têm um sentido, que através da fé de Israel, sustenta a fé cristã. Todo cristão, seja ou não de origem judaica, deve valorizar os pedidos da liturgia de Israel. Vai da coerência da Torá Una e única.