CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Estudo da Parasha da Semana - Cristãos estudando as fontes judaicas – Dt 11,26 – 16,17

REÊH – Educação a 10%
Moshe Grylak – Reflexões sobre a Torah. São Paulo: Sefer, 2015, p:251-255.

 

Nesta passagem bíblica Moisés declara guerra ao egoísmo, que é a origem da ambição e da luxúria. Moisés teme o egoísmo e, por este motivo, move uma guerra total contra ele. É grande a sua vontade de expulsá-lo de todos os aspectos da vida do país que está por surgir sobre as ruínas de Canaã. Assim, este trecho bíblico aborda o desenvolvimento de armas adequadas para o combate ao egoísmo, apresentando regras, mandamentos e leis cujo cumprimento rigoroso tem o poder de derrotá-lo. Este é um sistema de coerção que interfere na vida privada mais do que seria necessário para a manutenção da ordem pública, mas sua concretização tem o poder de construir o caráter de cada cidadão do país da Torah, moldando a cultura da própria sociedade. Em sua essência, este sistema não se distingue dos hábitos de higiene que impomos aos nossos filhos quando lhes damos as primeiras noções de cultura, refinamento e qualidade de vida. Pois, a cultura reside na restrição e limitação.

O odiado amor à riqueza

Qual seria, portanto, o ponto fraco do egoísmo ao qual Moisés direcionou suas flechas?

O amor ao dinheiro. Este amor profundo e marcado no coração de cada um de nós. O homem sente-se bem em companhia da riqueza que acumulou com o suor de seu rosto. Ele irá guardá-la e protegê-la de qualquer mal, mantendo-a tão próxima de si quanto possível, da mesma forma que o recém-nascido busca constantemente a proximidade de sua mãe. Esta vontade de proteger a riqueza desenvolve em seu 

coração diversos mecanismos de defesa, exigindo um determinado nível de insensibilidade. As necessidades alheias, da sociedade ou do país, precisam ser encurraladas em um contato longínquo da consciência e dos sentimentos. Afinal quem é que gosta, por exemplo, de pagar imposto de renda, apesar de saber que o dinheiro do imposto serve para manter toda a estrutura do Estado? Assim, o cidadão percebe apenas sua própria existência. Isso comprova o motivo pelo qual uma pessoa vê somente sua imagem refletida ao olhar no espelho: porque o outro lado dele está coberto com uma película de prata (prata e dinheiro, em hebraico, são designados pela mesma palavra: késef). Ao se viver este tipo de vida, sente-se o sopro gélido que marca as relações entre as pessoas. É um sopro gelado que vai além da fina camada de falsidade das convenções sociais. A consequência final deste tipo de situação é bem conhecida por todos nós.

O combate ao egoísmo por etapas

Diante desta realidade da vida, Moisés impõe um arcabouço de mandamentos que têm por objetivo salvar os filhos de Israel de sua própria cobiça. Examinaremos aqui uma parte destes mandamentos. Esta estrutura de mandamentos é elabora com base em efeitos psicológicos cumulativos e baseia-se na suposição de que os atos e feitos do ser humano influenciam seus pensamentos, sua visão de mundo e seu caráter, e não o contrário: “Saiba que o ser humano é acionado por suas ações, e seu coração e pensamentos (seguem) sempre atrás das ações com as quais se ocupa, para o bem e para o mal... pois os corações seguem as ações”. (Sefer Hachinuch, mandamento 20)

Esta suposição também encontra apoio na psicologia moderna (James e outros).

Portanto, é possível controlar o sentimento do egoísmo, através de atos compulsórios de entrega. Estes atos encontram-se ordenados da seguinte maneira: 1) Segundo dízimo, 2)Dízimo do pobre, 3) Revogação de dívidas e 4) Tsedacá (Caridade).

Conforme veremos adiante, esta é uma ordem que respeita considerações profundas sobre o caráter humano.

O primeiro destes mandamentos, o segundo dízimo, foi assim anunciado:

“Certamente separarás o dízimo de toda o produto de tuas sementes... E comerás diante do Eterno, teu Deus, no lugar que ali escolher para fazer habitar Seu nome... E se o caminho te for comprido, de sorte que não o possas levar... então o trocarás por dinheiro, e atarás o dinheiro à tua mão, e irás ao lugar que o Eterno, teu Deus, escolher. E darás este dinheiro por tudo o que desejar a tua alma, por gado...por vinho, ou por vinho velho... e comerás ali, e te alegrarás, tu e a gente da tua casa” (Dt 14, 22-27).

Todo proprietário de terra deveria separar um décimo de sua safra e de sua colheita e levá-lo a Jerusalém. Lá, ele e sua família deveriam comer desta colheita. Se a colheita fosse muito grande e não pudesse ser transportada, o proprietário deveria resgatar o dízimo em seu equivalente em moedas. Este dinheiro seria levado a Jerusalém para ser gasto apenas com alimentos.

Os proprietários de terra eram obrigados a separar este dízimo no primeiro, segundo, quarto e quinto ano do ciclo de sete anos compreendidos entre um ano sabático e outro.

Apesar deste mandamento não afetar as posses dos proprietários rurais, ele limitava o uso de um décimo da safra, obrigando-o a consumi-lo justamente em Jerusalém. Isto bastava para abalar o sentimento de posse absoluta que nutriam por seus bens, pois outro, que não ele, decidiu como ele deveria usufruir de sua colheita. E ao se comportar assim, ano após ano, o proprietário de terra hebreu certamente teria mudado seu modo de se relacionar com seus bens. Sem dúvida, ele se libertaria um pouco de sua descendência exclusiva da riqueza.

Então, ele chega à próxima etapa, que lhe impõe um desafio mais difícil de ser realizado, o dízimo do pobre:

“Ao fim de três anos tirarás todos os dízimos de teu produto, naquele ano, e os depositarás dentro de tuas cidades” (Dt 14,28).

Aqui, o proprietário é obrigado a separar um décimo da sua colheita e dá-lo aos outros, aos pobres. A educação do coração, para saber doar e entregar, é feita em etapas, por meio destes mandamentos. Em um ciclo de sete anos, o judeu se prepara durante quatro aos com o “segundo dízimo” em Jerusalém, e durante dois anos, o terceiro e o sexto, ele desafia seu egoísmo com o dízimo a ser doado aos pobres.

A despedida do patrimônio perdido

E a pedagogia bíblica não para por aí. Ela segue exigindo um desempenho ainda melhor de seus alunos, prosseguindo para assuntos que lhes são ainda mais opostos:

“Ao fim de cada sete anos, farás o ano sabático. E este é o modo do ano sabático: que todo credor que emprestou a seu companheiro, o deixará; não reclamará a seu companheiro, nem a seu irmão, porque chegou o ano sabático para o Eterno... mas lhe abrirás a tua mão, e lhe emprestará o suficiente para o que lhe faltar. Guarda-te que não haja uma coisa perversa em teu coração, nem digas: Aproxima-se o sétimo ano, o ano sabático, de modo que o teu olho seja mau para com teu irmão, o mendigo, e não lhe dês nada” (Dt 15,1-9).

Temos diante de nós o “perdão de dívidas”. Um mandamento que proíbe a cobrança de dívidas ao final do sétimo ano. Moisés acrescenta algumas dificuldades a este mandamento: exige que as pessoas não sejam perversas ao evitarem empréstimos ao próximo antes do ano de perdão das dívidas, ainda que estejam cientes da pequena possibilidade de reaver seu dinheiro.

Este é um nível muito elevado de entrega. A pessoa capaz de alcançá-lo já domina seu egoísmo natural de forma bastante clara e consciente. Seu coração consegue ver as necessidades alheias. Sua personalidade já extrapolou os limites estreitos do interesse egocêntrico.

A partir deste momento, a pessoa está preparada para um salto ainda maior, para exercitar-se em um nível ainda mais elevado, que é determinado pelo mandamento de Tsedacá expresso no seguinte versículo:

“Mesmo que seja muitas vezes, lhe darás, e que teu coração não seja mau quando lhe deres” (Dt 15,10).

Rabi Yitschac Arama esclarece que ao contrário de empréstimos, que na maioria das vezes retornam ao seu dono, aqui é exigido que a pessoa “dê de antemão para que não seja devolvido. E isto é mais difícil na natureza humana”. A alienação imposta dos próprios bens sempre é difícil.

O ego que cresce e se fortalece

No entanto, por meio deste desligamento dos bens, o homem ganha uma riqueza ainda maior. O processo nos é iluminado pelo seguinte midrash:

“E de onde sabemos que se abrires tua mão ao pobre uma vez, terminarás por abri-la até mesmo cem vezes? As escrituras nos ensinam: ‘Mas lhe abrirás a tua mão’ (Dt 15,8). E seu significado segundo os sábios de Israel é este: isto é uma promessa; se você não cerrar o punho e abrir a mão uma vez, será possuído por espírito generoso e abrirá sempre” (Malbim).

Conforme dissemos, a imposição com fins educativos contida neste mandamento acarreta uma bendita transformação de caráter. Ela desenvolve em seus seguidores a generosidade e a sensibilidade. Ao dizer que o ego cresce e se fortalece, estamos dizendo que o campo de interesses do ser humano cresce e se fortalece. Uma sociedade cujos indivíduos se aperfeiçoam continuamente nesta doutrina de entrega é uma sociedade feliz e saudável, que não conhece a pobreza de espírito, e na qual jamais alguém causa sofrimento ao próximo.
Não é de espantar, portanto, que Moisés tenha enfatizado aos ouvidos dos filhos de Israel tais valores, para que eles lhes fossem benéficos em seu futuro.

Parasha Reeh intro

Confira as seguintes citações bíblicas procurando uma correspondência continuidade entre as Escrituras Sagradas:
Tb 4,7.10; Eclo 3,33; Eclo 40, 17.24;
Mt 6,3; Lc 11,41; Lc 12,33; At 3,3.10; At 10,4

Que outras questões surgiram a partir da leitura desses textos? Lembre-se, às vezes as perguntas que fazemos são mais importantes que as respostas que encontramos.