Vayelekh Dt 31 1 30


CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Estudo da Parasha da Semana - Cristãos estudando as fontes judaicas - PARASHAT VAYELEKH – Dt 31, 1-30
Rabbi Joanthan Sacks
Essays on Ethics – A Weekly Reading of the Jewish Bible - New York: OUPRESS – Maggid, 2016, p. 323-327

 

A TORAH COMO CANÇÃO

A longa e tumultuada carreira de Moisés está para terminar. Com palavras de bênção e de encorajamento. Ele entrega seu manto de liderança para seu sucessor Josué, dizendo: Hoje tenho cento e vinte anos de idade. Eu não sinto dificuldade de movimentar-me. Além do mais, o SENHOR me disse: “Não atravessarás este rio Jordão” (Dt 31,2). Como Rashi afirma, ele disse: “eu não devo”, não “eu não posso”. Ele ainda está em pleno vigor: “sua vista ainda não tinha enfraquecido, nem seu vigor se tinha esmorecido” (Dt 34,7). Mas ele tinha alcançado o final da sua estrada pessoal. A hora havia chegado para uma nova era, uma nova geração, e um tipo diferente de líder.

Mas antes de deixar esta vida, Deus tem um último mandamento para ele, e através dele, para o futuro:

“E agora escreva para vocês esta canção e a ensinai aos israelitas, coloque-a em suas bocas, para que ela seja uma testemunha entre Mim e os filhos de Israel” (cf. Dt 31,19). O sentido claro do versículo é de que Deus ordenou Moisés e Josué a escrever a seguinte canção, que é a Haazinu (Dt 32, 1-43). Assim entenderam Rashi e Rambam. Mas a Tradição Oral leu de forma diferente.

De acordo com os Sábios de Israel “e agora escreva para vocês” se aplica à Torah como um todo. Deste modo, o último dos 613 preceitos é para escrever – ou ao menos tomar parte na escrita, nem que seja de uma única letra – um rolo da Torah. Aqui se encontra o estatuto da Lei:

“Todo filho de Israel é ordenado a escrever um rolo de Torah para si mesmo, como diz: Agora, portanto, escreva esta música”, significando: “Escreva para si mesmos (uma cópia completa) da Torah que contém essa música”, pois não escrevemos isolados passagens da Torah (mas apenas um pergaminho completo). Mesmo que alguém tenha herdado um rolo de Torah de seus pais, é uma mitsvá escrever um para si mesmo, e quem o faz é como se tivesse recebido (a Torah) do Monte Sinai. Quem não sabe escrever um pergaminho pode contratar (um escriba) para fazer isso por ele, e quem corrige uma única letra é como se estivesse escrito um pergaminho inteiro[1].

Por que este mandamento? Por que então, no final da vida de Moisés? Por que torná-lo o último de todos os mandamentos? E se a referência é a Torah como um todo, por que chama-la de “Canção”?

A Tradição Oral está aqui sugerindo um conjunto de ideias muito profundas. Primeiro, está dizendo aos israelitas e a nós em todas as gerações que não basta dizer: “Recebemos a Torah de Moisés” ou “de nossos pais”. Temos que tomar a Torah e torná-la nova em todas as gerações. Temos que escrever nosso próprio rolo de Torah. O ponto central sobre a Torah não é que ela seja antiga, mas que seja nova; não é apenas sobre o passado, mas sobre o futuro. Não é simplesmente um documento antigo que vem de uma era anterior na evolução da sociedade. Ela nos fala, aqui, agora – mas não sme nos esforçarmos para escrevê-la novamente.

Existem duas palavras em hebraico para significar uma herança: nachalah e yerushah/morasha. Elas transmitem ideias diferentes. Nachalah está relacionada à palavra nachal, que significa um rio, um riacho. À medida que a água flui ladeira abaixo, uma herança flui ao longo das gerações. Isso acontece naturalmente. Não precisa de nenhum esforço da nossa parte.

Outra palavra é Yerushah/Morashah com outro sentido diferente. Aqui o verbo está ativo. Significa tomar posse de algo por uma ação ou esforço positivo. Os israelitas receberam a terra como resultado da promessa de Deus a Abraão. Era o legado deles, mas eles ainda tiveram que travar batalhas e vencer guerras. Lehavdil, Mozart e Beethoven nasceram de pais musicais. A música estava em seus genes, mas sua arte era o resultado de um trabalho duro, quase interminável. A Torah é uma Morashah, não uma nachalah. Precisamos escrever para nós mesmos, não apenas herdá-la de nossos ancestrais.

E por que chamar a Torah de uma canção? Porque se quisermos entregar a nossa fé e modo de vida para a próxima geração, ela deve cantar. A Torah deve ser afetiva, não apenas cognitiva. Deve falar com as nossas emoções. Como Antônio Damasio mostrou empiricamente no Erro de Descartes[2] que a parte racional do cérebro é a central e o que faz que nos tornemos humanos, é o seu sistema límbico, a sede das emoções, que nos leva a escolher esse caminho, e não o outro. Se nossa Torah não tiver paixão, não conseguiremos transmiti-la para o futuro. A música é a dimensão afetiva da comunicação, o meio através do qual expressamos, evocamos e compartilhamos emoções. Precisamente porque somos criaturas de emoção, a música é uma parte essencial do vocabulário da humanidade.

A música tem uma estreita associação com a espiritualidade. Como Rainer Maria Rilke afirmava: As palavras ainda vão suavemente saindo para o indizível. E música sempre nova, de pedras palpitantes. Constrói no espaço qualquer sua casa piedosa.[3]

A música é central para a experiência judaica. Nós não oramos; nós nos deliciamos, ou seja, cantamos as palavras que direcionamos para o céu. Também não lemos a Torah. Em vez disso, cantamos, cada palavra com sua própria cantilação. Mesmo textos rabínicos nunca são meramente estudos; nós os cantamos com a canção específica conhecida por todos os estudantes do Talmud. Cada texto tem sua melodia específica. A mesma oração pode ser cantada por meia dúzia de músicas diferentes, dependendo de fazer parte do culto da manhã, da tarde ou da noite e se é um dia da semana, um sábado ou dia festivo ou uma grande solenidade. Existem cantilações diferentes para as leituras bíblicas dependendo se o texto vem da Torah, dos Profetas ou dos Ketuvim, ‘os Escritos’. A música é o mapa do espírito judaico, e cada experiência espiritual tem sua própria paisagem melódica distinta.

O judaísmo é uma religião das palavras e, no entanto, sempre que a linguagem do judaísmo aspira ao espiritual, ela se modula em canto, como se as próprias palavras procurassem escapar da atração gravitacional de significados finitos. A música fala com algo mais profundo que a mente. Se queremos tornar a Torah nova em todas as gerações, precisamos encontrar maneiras de cantar sua canção de uma nova maneira. As palavras nunca mudam, mas a música muda.
Um antigo rabino-chefe de Israel, o rabino Avraham Shapiro, uma vez contou uma história sobre dois grandes sábios rabínicos do século XIX, eruditos igualmente distintos, um dos quais perdeu seus filhos para o espírito secular da época, e o outro foi abençoado por crianças que seguiram seu caminho. A diferença entre eles era essa, ele disse: quando se tratava da terceira refeição do sábado, o primeiro falava palavras da Torah enquanto o último cantava. Sua mensagem foi clara. Sem uma dimensão afetiva – sem música – o judaísmo é um corpo sem alma. São as canções que ensinamos a nossos filhos que transmitem nosso amor a Deus.

Alguns anos atrás, um dos líderes do mundo judaico queria descobrir o que havia acontecido com as “crianças judias desaparecidas” da Polônia, aquelas que durante a guerra, haviam sido adotadas por famílias cristãs e criadas como católicas. Ele decidiu que o caminho mais fácil era através da comida. Ele organizou um grande banquete e colocou anúncios na imprensa polonesa, convidando quem quer que acreditasse ter nascido judeu para vir a este jantar grátis. Centenas chegaram, mas a noite estava à beira do desastre, já que nenhum dos presentes conseguia se lembrar de nada da sua infância – até que o homem perguntou à pessoa sentada ao lado se ele conseguia se lembrar da música que sua mãe judia havia cantado antes de dormir. Ele começou a cantar Rozhinkes mit mandlen (passas e amêndoas) a velha canção de ninar Iídiche. Lentamente, outros se juntaram, até que a sala inteira ficou em coro. Às vezes, tudo o que resta da identidade judaica é uma música.

O rabino Yehel Michael Epstein, na introdução do Arukh ha-Schulchan, Chosshen Mishpat, escreve que a Torah é comparada a uma música porque, para quem aprecia música, o som coral mais bonito é uma harmonia complexa com muitas vozes diferentes cantando notas diferentes.

Assim, ele diz, é com a Torah e seus inumeráveis comentários, suas “setenta faces”. O judaísmo é uma sinfonia coral marcada por muitas vozes, o texto escrito sua melodia, a tradição oral sua polifonia. Assim, é com um sentido poético de fechamento que a vida de Moisés termina com o mandamento de começar de novo em todas as gerações, escrevendo nosso próprio pergaminho, acrescentando nossos próprios comentários. As pessoas do livro reinterpretando infinitamente o Livro do Povo e cantando a sua música. A Torah é o Livro de Deus, e nós, o povo judeu, somos o Seu coro. Coletivamente, cantamos a canção de Deus. Nós somos os artistas de Sua sinfonia coral. E, porém, quando os judeus falam, muitas vezes discutem, quando cantam, cantam em harmonia, porque as palavras são a linguagem da mente, mas a música é a linguagem da alma.

Para aprofundar o estudo da Palavra, confira as seguintes citações
Ex 17,14; Ex 34,27; Is 43,19; Mt 13,52; Ap 5,1
O que os textos bíblicos e o texto da Parashat nos mostram sobre a Palavra de Deus? Como se pode afinal transmitir algo de uma geração para outra? Via riacho, ou via esforço? Por que?
Que outras questões surgiram a partir da leitura desses textos? As perguntas que fazemos são mais importantes que as respostas que encontramos, pois nos levam adiante no entendimento das Sagradas Escrituras.l


[1] Mishneh Torah, Hilkhot Tefilin, Mezuza, VeSefer Torah 7,1.
[2] Antônio Damasio. Descartes’Error: Emotion, Reason and The Human Brain (London, Penguin, 2005).
[3] Sonetos para Orpheus, Livro II, soneto 10.