Familia Abraamica

Daniel Fasa – Revista Cidade Nova edição Março de 2021

Fraternidade – Casais Judeus, Católicos e Muçulmanos formam uma “Família Abraâmica” para testemunhar a riqueza que nasce da diversidade.

Quando se pensa em diálogo inter-religioso logo vem à mente a imagem de líderes paramentados segundo suas tradições, reunidos ao redor de uma mesa ou cumprimentando-se num gesto de paz. Mas, para criar raízes, essa cultura do reconhecimento recíproco deve se estender a toda a comunidade de leigos e leigas. Por essa razão, nasceu em São Paulo uma Família Abraâmica, grupo de casais Judeus, Católicos e Muçulmanos que, desde 2016, encontram-se mensalmente para cultivar um relacionamento fraterno.

Intitulada em referência ao patriarca comum às três grandes religiões monoteístas, a iniciativa é promovida pela Casa da Reconciliação, da arquidiocese de São Paulo, em parceria com a comunidade judaica Esh Tamid, o Centro Islâmico e de Diálogo Inter-religioso e Intercultural e o Centro Cultural Brasil Turquia. São mais de 50 famílias dispostas a aprofundar o conhecimento recíproco e enriquecer-se com a diversidade da fé professada e vivida, por meio de momentos de oração, partilha e reflexão sobre temas como vida após a morte, caridade, fundamentalismo e espiritualidade.

“Essas experiências vêm ao encontro do que o Papa Francisco diz hoje. Nós precisamos encurtar distâncias, construir pontes. São famílias que não só se encontram, mas que vão testemunhando a fé, o amor, o respeito, a convivência. É disso que o mundo precisa hoje: construir pontes”, explica o Cônego José Bizon, coordenador da Casa da Reconciliação.

Educar para a Paz

Antes de se mudarem da Turquia para o Brasil, Enes Acar, 38, e sua esposa Zeliha, 37, raramente tinham contato com pessoas que não fossem muçulmanas. Surpresos com a diversidade religiosa encontrada no novo país, aceitaram o convite para fazer parte da Família Abraâmica. “Não foi tão fácil dar o primeiro passo para o diálogo. Mas depois de começar a andar e encurtar as distâncias, nós sentimos pena pelos tempos perdidos. A vida é muito curta. E temos muito trabalho à frente. Servimos ao mesmo Deus Allah Adonai”, afirma Acar.

Hoje, as festas de Judeus e Cristãos fazem parte do calendário da família Muçulmana e os encontros são considerados por eles momentos fundamentais na educação dos três filhos, todos com menos de 10 anos. “Em cada reunião, temos acrescentado mais tijolos ao prédio da sabedoria. E essa sabedoria faz com que nos tornemos mais amigos. Estamos nos tornando pessoas mais sensatas. Nossos filhos crescem vendo essas cenas. Para eles, não dialogar será fora do normal”, celebra Acar, que, assim como a esposa, é professor.

Juntos no amor e na dor

O casal católico Ana Maria Bastos, 64, e Roberto Rigo, 69, estão em outra fase da vida, com filhos adultos e dois netos, mas também valorizam muito as experiências proporcionadas pelo grupo. Eles contam que, além dos encontros mensais, há também visitas recíprocas entre as famílias, por meio da formação de grupos menores compostos por ao menos um representante de cada religião. Com a pandemia, as visitas tiveram que ser interrompidas, mas os encontros mensais permaneceram, agora através da internet.

“Eu e o Roberto recolhemos tampinhas de plástico para ajudar o Hospital do Câncer Infantil. A gente lançou a ideia no grupo e foi impressionante a adesão deles de também fazer essa atividade com a gente. Mesmo na pandemia, eles deixam aqui embaixo no nosso prédio ou na Casa da Reconciliação. Coisa de 60, 80 kg”, conta Ana Maria.

A empresária acrescenta que os momentos de dor também são compartilhados: “alguns Muçulmanos perderam familiares, pai, mãe, e não puderam viajar, então logo eles comunicavam todos nós do grupo e era interessante ver como cada um se colocava à disposição, dizendo que estava junto, que estava oferecendo, que estava rezando uma missa. Isso foi bem importante”.

Conhecer é amar

Raul Meyer, 76, e sua esposa Marcela foram um dos casais pioneiros da Família Abraâmica. À luz de sua longa experiência como diretor de uma indústria alemã e líder espiritual da comunidade judaica Esh Tamid, ele acredita que todas as religiões devem ser valorizadas, porque podem contribuir para que as pessoas tenham uma vida mais equilibrada e se relacionem bem.

“Como diz aquela frase, conhecer é amar, desconhecer é temer. Quer dizer: eu não conheço, então eu tenho medo. A maioria dos seres humanos, ao não conhecer, toma uma posição negativa”. Por isso, para ele, a experiência do diálogo inter-religioso tem um valor intrínseco e contribui para a transformação social, como procura evidenciar ao contar uma experiência vivida algum tempo atrás:

“Um dia, a diretoria resolveu dar um prêmio para o diálogo inter-religioso convidando o Cônego Bizon e o Sheik Mohamad Al Bukai a receberem esse prêmio. Nós tivemos a reunião, entregamos uma placa de prata a cada um; foi tudo numa forma cerimonial etc. E nós três saímos para jantar: o Sheik, Bizon e eu. O Sheik estava paramentado e o Bizon também. Eu perguntei se o Sheik queria se trocar, ele disse que não. Bizon estava com o clergyman, então eu coloquei meu solidéu, que é uma característica Judaica, e fomos jantar num restaurante que ficava a 150 metros do escritório da Federação.

Entramos às 19 horas; não tinha ninguém. O maître, ao nos ver caracterizados, imediatamente fez elogios. Nós escolhemos uma mesa num canto, junto à parede. Muito bem. Nós começamos a jantar e aí as pessoas começaram a vir. E nós não conseguíamos jantar. As pessoas vinham falar conosco, dar os parabéns, dar um abraço, falando que era fantástico, que eram dessa ou daquela religião, que achavam muito bonito que nós três estávamos jantando juntos. Até o ponto em que nós estávamos já na sobremesa e um aniversariante, um senhor de 60 anos, nos mandou entregar por meio do garçom o bolo, para nós participarmos do aniversário. Essa experiência, que não foi nada programada, mostra o que as pessoas fazem e recebem ao fazer o diálogo, a abertura, o respeito, o entendimento de que a diferença é importante. Eu não preciso ser igual. Ao contrário, ser igual é muito monótono; as pessoas, conhecendo outras culturas, aprendem e crescem culturalmente”.

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