77 – Yom Kippour – O dia do Perdão

O DIA DO PERDAO

O verbo k.p.r. significa "cobrir". Nós encontramos esse verbo na Bíblia pela primeira vez quando o Eterno Deus pediu a Noé a respeito da arca: "Tu a recobrirás no interior e no exterior com piche" (Gn 7,14). Entre os elementos do Santuário móvel do deserto, a Bíblia faz menção do kaporeth, traduzido por "propiciatório", que era a tampa colocada sobre a Arca da Aliança que continha as Tábuas da Lei (Ex 24,17). Kippour está relacionado com a recuperação, como quando se fala do levantamento, da recuperação de uma dívida.

O conceito de recuperação implica também num ato positivo de recolher as memórias para apagá-las e de condutas a ser corrigidas, mais do que uma simples ocultação ligado ao esquecimento. Somente o trabalho da memória pode gerar a expiação, e tornar límpida novamente a consciência moral e o fervor religioso.

Como em Rosh Hashana também Kippour  não está relacionado a algum evento específico. É Kippour também um hok, um decreto divino. Apesar dessa ausência no Pentateuco, a tradição oral relembra que Kippour está relacionado a um momento central da revelação divina: o perdão diante da fabricação do bezerro de ouro. Para a tradição, o perdão não é somente um ato de fé, mas sim uma experiência vivida e para sempre se viver.

Uma questão surgiu: Por que nós somos julgados antes de ser perdoados? Por que Rosh hashana precede  a festa de Kippour? Não seria melhor agir com mais "misericórdia" em antes cobrir as dívidas, para depois nos apresentarmos brancos diante do Juiz supremo?

O Midrash[1] conta-nos que Deus queria criar o mudo segundo o atributo do rigor, mas constatando que ele não podia se manter, ele acrescentou a misericórdia. O  julgamento precede o perdão, pois a Criação está baseada no princípio da responsabilidade e da reciprocidade. Sendo parceiro de Deus, o ser humano é interpelado na sua capacidade dar acabamento àquilo que o Criador tinha começado. Mas como humanamente falando, nós estamos sempre abaixo do ideal religioso, existe uma necessidade ontológica de revelar o princípio do arrependimento (techouva).

Estamos diante do momento onde o julgamento é selado, pronunciado. Nesse momento a pessoa é convidada a assumir a revisão do julgamento mudando aquilo que se passou e isso representa uma verdadeira purificação da consciência.

O bode expiatório existia na época do Templo. Apresentava-se ao sumo sacerdote dois bodes. Esse tirava a sorte e o primeiro era sacrificado ao Eterno Deus. O segundo (o bode expiatório) era sacrificado no deserto. Não se trata de oferecer algo às forças ocultas e estranhas ao poder de Deus. Mas criando a liberdade, o mal moral se torna possível. O sumo sacerdote, fortalecido pela consciência desse Deus Onipresente, podia então penetrar no Santo dos Santos, lugar no qual ele pronunciava o Nome de Deus, o Tetragrama Inefável, para invocar Aquele cujo Nome é fonte de vida.

A Bíblia não fala igualmente de jejum, e nem fala de abster-se de alimento: "O dia dez desse sétimo mês é o dia da Expiação, e humilhareis as vossas almas e oferecereis ao Eterno sacrifícios consumidos pelo fogo" (Lv 23,27). Foi a tradição oral que preencherá as lacunas. Para o Hebreu, mortificar o corpo, afligir a alma é essencialmente privação alimentar. Mas nunca isso levou à outras práticas mais severas. Pelo contrário, o verdadeiro jejum para Israel, conforme está escrito em Isaías 58 revela o verdadeiro valor do Kippour: o verdadeiro jejum para o Eterno é oferecer comida àquele que tem fome, de vestir aquele que está nu, de abrigar os sem-teto. Essa é a essência do discurso profético!

Os rabinos ainda legislaram sobre essa "mortificação" através de cinco proibições: não comer nem beber; não se lavar; não usar perfume; não colocar sapatos de couro e não ter relações conjugais. Portanto, durante vinte e cinco horas o fiel irá ignorar seu conforto físico ou social, e escolherá a humildade diante do Juiz dos seus destinos. Terminaremos mostrando um trecho do Tratado do Talmud Yoma, que fala sobre Kippour: "As transgressões entre o Adão e Deus são cobertos no dia das expiações, mas as transgressões entre o Adão e o seu próximo, o dia das expiações não os cobre a não ser que ele (seu autor) se reconcilie com ele".

Um texto fundamental! A falta para com Deus, a falta religiosa, é reparável, por uma vontade de se aperfeiçoar. Mas com relação aos outros, a reconciliação dos corações deve preceder a oração em direção ao Altíssimo. Agir mal contra o seu próximo é um crime duplo contra o ser humano e contra Deus que nos pediu o amor.


[1] Béréchit Rabba, cap. I.