Parasha Bamidbar No deserto


CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Cristãos estudando as fontes judaicas – Bamidbar – No Deserto – Nm 1,1 – 4,20

SACKS, Rabbi Jonathan. Essays on Ethics – A weekly Reading of the Jewish Bible. United States: Maggid Books, 2016, p. 215-220.

 

Bamidbar – No deserto

Lei como Amor

Uma das mais pitorescas cenas na História Judaico Inglesa ocorreu em 14 de Outubro de 1663. Apenas tinham passado sete anos desde que Oliver Crowed não tenho encontrado nenhum impedimento legal para os Judeus morarem na Inglaterra (o assim chamado “retorno” de 1656), uma pequena sinagoga foi aberta em Creechurch Lane na cidade de Londres, precursora de Bevis Marks (1701), o mais velho lugar ainda hoje existente de local de oração judaica na Inglaterra.

O famoso colunista  Samuel Pepy decidiu fazer uma visita para verificar a novidade do que estava acontecendo ali e ver como os Judeus se comportavam em oração. O que ele viu o espantou e escandalizou. Como a possibilidade e a providência o fizeram, o dia desta visita caiu justamente na Festa de Simhat Torah. E o que ele descreveu foi o que ele viu:

E de repente suas Leis saíram para fora (isto é, da Arca) foram carregadas por vários homens, quatro ou cinco delas ao todo, e eles as revezavam entre si; e se alguém desejasse fazer isso, eu não posso afirmar, então eles a carregavam até à sala enquando o serviço era cantado.... Mas, Senhor do céu! Para imaginar a desordem, rindo, pulando, mas não com atenção, mas confusão em todo o serviço, mais como selvagens do que pessoas que conhecem o verdadeiro Deus, tudo isso teria feito um homem renegar tudo vendo essas pessoas, quando realmente eu nunca tinha visto nada igual, ou pudesse imaginar que existisse alguma religião no mundo inteiro que agisse desta forma.[1]

Este não era a forma ideal de comportamento que ele estava acostumado a ver numa casa de oração.

Existe de fato alguma coisa de única na relação entre Judeus com a Torah, o modo como ficam de pé na sua presença como se estivessem diante de um rei, dançar com ela como se fosse com uma noiva, ouvi-la como se estivesse contado a nossa história pessoal de vida e estudá-la como se diz nas sua orações, “nossa vida e compromisso dos nossos dias”. Existem pouquíssimas linhas de oração que contém num poema dito no final do dia de Yom Kippour, Neila: Ein shiur rak HaTorah hazot – Nada resta”, após a destruição do Templo e da perda da terra, “somente esta Torah!”. Um livro, um rolo, foi o que restou entre Judeus e o desespero.

O que não Judeus (e algumas vezes Judeus) deixam de considerar é como, no Judaísmo, a Torah apresenta a Lei como Amor, e Amor como a Lei. A Torah não é apenas  “legislação revelada”[2]. Ela representa  a fé de Deus em nossos antepassados, de como Ele confiou neles com a criação de uma sociedade que iria se tornar um Lar para Sua Presença e um exemplo para o mundo.

Uma das chaves de compreensão de como isso realmente funciona está presentre na Parashat Bamidbar, lida sempre antes Shavuot, que comemora o presente do recebimento da Torah. Isso relembra para os judeus quão central é a ideia daquela região desabitada – o deserto – terra de ninguém – para o Judaísmo. É o midbar, região selvagem, que dá a essa parasha e o livro inteiro o seu nome. Foi no deserto que os Israelitas fizeram um contrato com Deus, que enviou até eles água de uma rocha e maná dos céus e cercou-os com nuvens de glória.

Qual história está sendo contada aqui? A Torah está nos contando três fundamentais pontos para a identidade Judaica. Primeiro, que é o único fenômeno no Judaísmo onde a lei precede a terra. Primeiro, em qualquer outra nação na História acontece o contrário. Primeiro vem a terra, os assentamentos humanos, primeiro em pequenos grupos, depois em vilarejos, e depois cidades. Depois surgem formas de organização, de ordem e ed e governo e um sistema legal: primeiro a terra, depois a lei.

No Judaísmo o fato de que a Torah foi dada no deserto, bamidbar, antes do povo ter entrado na terra, significa que Judeus e Judaísmo eram unicamente capazes de sobreviver, com suas identidades intactas, até mesmo no Exílio.

Porque a Lei veio antes da terra, mesmo quando os Judeus perderam a terra, eles ainda tinham a Lei. Isso queria dizer que mesmo no exílio, Judeus ainda eram uma nação. Deus manteve a soberania deles. O pacto ainda estava de pé. Mesmo sem uma geografia, eles tinham uma história contínua. Mesmo antes que tivessem entrado na terra, aos Judeus tinha sido dada a habilidade para sobreviver fora da mesma terra.

Segundo, existe uma torturante conexão entre midbar, “região selvagem” e “davar”, “palavra”. Enquanto outras nações acharam seus deueses na natureza – a chuva, a terra, a fetilidade, e as estações do ano agrícola – já os Judeus descobriram Deus na sua Transcendência, para além da natureza, umnão pode  Deus que não podia ser visto, mas antes ouvido. No deserto, não existe natureza. No lugar dela, existe o vazio e silêncio, um silêncio no qual qualquer um pode ouvir a tremenda voz dAquele que está para além do mundo. Como Edmond Jabès colocou: “A palavra não pode fazer morada a não ser a partir do silêncio das outras palavras. Falar é, conformar-se e confiar na metáfora do deserto”[3].

O historiador Eric Voeglin viu nisso algo fundamental, completamente uma nova forma de espiritualidade que havia nascido a partir da experiência dos Israelitas:

“Quando empreendemos o êxodo e vagamos pelo mundo, de modo a fundar uma nova sociedade em algum lugar, nós descobrimos o mundo como o Deserto. O vôo leva a lugar algum, até encontrarmos o apoio para além do mundo. Quando o mundo se tornou um Deserto, então o homem está finalmente na solidão na qual ele pode escutar de modo fulminante a voz do espírito que no seu sussurro urgente  já tinha sido dirigido a ele e o resgatado do Sheol (o domínio da morte). No Deserto Deus falou para o líder e suas tribos; no deserto, por escutar a voz, por aceitar o que ela oferece, e por submeter-se ao que ela comanda, eles finalmente alcançaram a vida e se tornaram o povo escolhido por Deus”[4].

No silêncio do deserto, Israel se tornou o povo no qual a primeira experiência religiosa não tinha sido a visão, mas ouvindo e escutando: Shema Israel! O Deus de Israel revelou a Si mesmo num discurso. Judaismo é uma religião de palavras sagradas, na qual o mais sagrado objeto é um livro, um rolo, um texto.

Terceiro, e mais notável ainda, é a interpretação que os profetas deram  para esses anos formadores no qual os Israelitas, tendo deixado o Egito e ainda não tendo entrado na terra, estavam sozinhos com Deus. Oseias, prevendo um segundo êxodo, disse em nome de Deus:

Eu a levarei para o deserto (diz Deus para os Israelitas)

E falarei ternamente para ela...

Lá ela vai responder como nos dias de sua juventude,

Como nos dias em que ela saiu do Egito (Oseias 1,16-17).

Jeremias (2,2) diz em nome de Deus: “Eu me lembro de ti, da paixão da tua juventude, do amor do teu noivado, quando me seguias pelo deserto, terra não semeada”. Shir HaShirim (Cântico dos Cânticos), contém esta linha, “Quem é esta que sobe do deserto, apoiada no seu amado?” (Ct 8,5).

O que existe de comum em todos esses textos é a ideia do deserto como uma lua de mel na qual Deus e o Povo, imaginado como um noivo e noiva, estavam sozinhos juntos, consumando a sua união no amor. Para ter certeza, na Torah ela mesma, vemos os Israelitas como recalcitrante, obstinado povo lamentando-se e se revoltando contra Deus. Os profetas porém viram em retrospecto, de forma diferente. O deserto era um tipo de yihud, uma espécie de união sozinha, no qual o povo e Deus se uniram em amor.

Muito educador neste contexto é o trabalho do antropólogo Arnold van Gennep, que reforçou a atenção na importância dos ritos de passagem[5]. As sociedades desenvolveram rituais para marcar a transição de um estado para outro – da infância para a maturidade, por exemplo, ou de ser solteiro para ser casado – e elas envolvem três estágios. O primeiro é a separação, uma simbólica ruptura com o passado. O último é a incorporação, uma reentrada na sociedade com uma nova identidade. Entre os dois existe o crucial estágio da transição quando, tendo sido arrebatado da sua identidade, mas não tendo ainda sido revestido da outra, você é refeito, renascido, remodelado.

Van Gennep utilizou o termo liminal, da palavra Latina para “limite”, para descrever esse estado de transição quando você se encontra num tipo de terra de ninguém entre o velho e o novo. É isto que o deserto significa para Israel: liminal espaço entre escravidão e liberdade, passado e futuro, exílio e retorno., Egito e Terra Prometida. O deserto foi o espaço que tornou a transição e transformação possível. Lá, nessa terra de ninguém, os Israelitas, sozinhos com Deus e com os outros, puderam deixar uma identidade e assumir outra. Eles poderiam, portanto, renascer, não mais como escravos do Faraó, ao contrário, servos de Deus, convocados para se tornar “um Reino de Sacerdotes e uma Nação Santa” (Ex 19,6).

Ver o deserto como o “espaço entre” pode nos ajudar a ver a conexão entre os Israelitas nos dias de Moisés e do antepassado cujo nome eles abriram um caminho. Pois foi de Jacó entre os Patriarcas que teve suas mais intensas experiências de Deus nesse “”liminal” (limite) espaço, entre o local que ele estava deixando e àquele para o qual estava se deslocando para, sozinho e à noite. Foi lá, fugindo do seu irmão Esaú mas não tendo ainda chegado em casa de Labão, que ele teve uma visão de uma escada estendida da terra até ao céu com anjos subindo e descendo, e lá no seu retorno que lutou com um estranho de noite até à madrugada e foi lhe dado o nome de Israel. Esses episódios podem agora ser vistos como prefigurações do que iria acontecer depois com seus descendentes (“os atos dos pais como um sinal do que irá acontecer com os filhos” – maaseh avot siman levanim – Cf. Comentário de Ramban em Gn 12,6).

O deserto então se tornou o lugar de nascimento de uma relação totalmente nova entre Deus e a humanidade, uma relação construída num pacto, discurso, e amor concretizados na Torah. Distante dos grandes centros da civilização, um povo se encontrou sozinho com Deus e lá consumaram uma ligação que exílio algum nem tragédia alguma poderiam quebrar. Essa é a verdade moral no coração pulsante de nossa fé: não existe poder ou política alguma, que nos une a Deus, a não ser o amor.

Alegria na celebração daquele amor que levou o Rei Davi a “pular e a dançar” quando a Arca foi trazida para Jerusalém, causando a desaprovação da filha do Rei Saul, Micol (2Sm 6,16), e que muitos séculos depois levou também os Judeus Ingleses de Creenchurch Lane a dançar em Simhat Torah para a desaprovação de Samuel Pepys. Quando o amor vence sobre a dignidade, a fé está viva e passa muito bem.

Confira as seguintes citações bíblicas e identifique alguma concordância entre elas.
Explique a relação delas com a parashá de hoje.

Is 40,3; Mc 8,4; Mc 14,15;
Mc 6,35; Lc 9,12; Mc 14,13; Mc 6,31.


[1] The Diary of Samuel Pepys, ed. Richard Le Gallienne (New York: Modern Libray Classics, 2003), 106. 
[2] Moisés Mendelssohn. Jerusalem, or, On Religious Power and Judaism, trans. Allan Arkush (Hanover, NH: University Press of New England, 1983) 89-90; 126-128.
[3] Edmond Jabès. Du Désert au Livre (Paris: Pierre Belford, 1980), 101.
[4] Eric Voegelin, Israel and Revelation (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1956), 153.
[5] The Rites of Passage (Chicago: University of Chicago, 1960).