Parasha Behaalotechá

CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS – PARASHÁ BEHAALOTECHÁ
Cristãos estudando as fontes Judaicas – P. Fernando Gross

Nm 8,1 – 12,16 – Do Desespero para a Esperança – Sir Jonathan Sacks[1]

Houve momentos em que uma passagem na parashá de hoje foi para mim quase um pouco menos do que salvar vidas. Nenhuma posição de liderança é fácil. Líderes religiosos ainda são mais difíceis. E a liderança espiritual pode ser a mais difícil de todas. Os líderes têm um rosto público que geralmente é calmo, otimista, positivo e relaxado. Mas por trás da fachada, todos nós podemos experimentar tempestades de emoção ao percebermos quão profundas são as divisões entre as pessoas, quão intratáveis são os problemas que enfrentamos e quão fina é a camada de gelo sob a qual estamos. Talvez todos nós experimentemos esses momentos em algum momento de nossas vidas, quando sabemos onde estamos e onde queremos estar, mas simplesmente não conseguimos ver uma rota daqui para lá. Esse é o prelúdio do desespero.

Sempre que me sentia assim, voltava-me para o momento abrasador em nossa parashá, quando Moisés atingia seu ponto mais baixo. A causa que precipitou esse momento foi aparentemente leve. As pessoas estavam envolvidas em sua atividade favorita: reclamar da comida. Com nostalgia enganosa, eles falaram sobre o peixe que comiam no Egito e os pepinos, melões, alho-poró, cebola e alho. Longe estava a lembrança da escravidão. Tudo o que eles lembram é a sobre a culinária. Nisto, compreensivelmente, Deus estava muito zangado (Nm 11,10). Mas Moisés estava mais do que zangado. Ele sofreu um colapso emocional completo. E então ele disse a Deus:

“Por que querer fazer mal a teu servo? Por que caí em desgraça diante de Ti, a ponto de colocares em mim o fardo de todo esse povo? Fui eu, por acaso, quem concebi esse povo inteiro? Fui quem deu à luz a esse povo, para que você me dissesse: carregue-o no colo como uma ama carrega um bebê? ... Onde posso encontrar carne para dar a todo esse povo que me segue em lágrimas e me diz: ‘Dá-nos carne para comer’? Eu não posso carregar sozinho todo este povo. É muito pesado para mim. Se é isso que me tratas, dá-me antes a morte! Se é que ao menos encontrei graça a teus olhos! Que eu não tenha de sofrer minha triste sorte!”. (Nm 11, 11-15)

Isto para mim é uma referência na hora do desespero. Sempre que me sentia incapaz de continuar, lia essa passagem e pensava: “Se ainda não cheguei a esse ponto, estou bem”. De alguma forma, o conhecimento de que o maior líder judeu de todos os tempos havia experimentado essa profundidade das trevas era fortalecedor. Dizia que o sentimento de fracasso não significa necessariamente que você fracassou. Tudo o que isso significa é que você ainda não conseguiu. Menos ainda significa que você é um fracasso. Pelo contrário, o fracasso chega para quem assume riscos; e a disposição de correr riscos é absolutamente necessária se você procurar, por menor que seja, mudar o mundo para melhor.

O que chama a atenção na Bíblia é a maneira como se narram essas noites sombrias da alma na vida de alguns dos maiores heróis do espírito. Moisés não foi o único profeta a rezar para morrer. Três outros fizeram isso: Elias (1Reis 19,4), Jeremias (Jr 20,7-18) e Jonas (Jn 4,3)[2]. Os Salmos, especialmente aqueles atribuídos ao rei Davi, são atingidos por momentos de desespero: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 22: 2). “Das profundezas clamo a Ti” (Sl 130: 1). “Eu sou um homem indefeso, abandonado entre os mortos. Tu me fizestes descer no poço mais baixo, no escuro, nas profundezas” (Sl 88, 5-7).

O que a Bíblia nos conta nessas histórias é profundamente libertador. A história bíblica não é uma suave receita de bem-aventurança. Não é uma garantia de que você será poupado da mágoa e da dor. Não é o que os estoicos buscavam, apatia, uma vida imperturbável pela paixão. E também não é um caminho para o nirvana, acalmando o fogo dos sentimentos, extinguindo o eu. Essas coisas têm uma beleza espiritual própria, e suas contrapartidas podem ser encontradas nas vertentes mais místicas do judaísmo. Mas eles não são o mundo dos heróis e heroínas da Bíblia.

Por que então? Porque na Bíblia o convite é oferecido a ter uma fé para aqueles que procuram mudar o mundo. Isso é incomum na história da fé. A maioria das religiões trata de aceitar o mundo como ele é. Nas narrativas bíblicas vemos um protesto contra o mundo que existe em nome do mundo que deveria ser. Esta fé se traduz em procurar fazer a diferença, mudar vidas para melhor, curar algumas das cicatrizes do nosso mundo fraturado. Mas as pessoas não gostam de mudanças. É por isso que Moisés, Davi, Elias e Jeremias acharam a vida tão difícil.

Podemos dizer precisamente o que levou Moisés a se desesperar. Ele já tinha enfrentado um desafio semelhante antes. De volta ao livro de Êxodo, o povo fez a mesma reclamação: “Se ao menos tivéssemos morrido pela mão do Senhor na terra do Egito, quando nos sentávamos ao lado das panelas de carne e comemos pão com fartura, pois você nos trouxe fora neste deserto para fazer morrer de fome todo este povo”(Ex 16,3). Moisés, naquela ocasião, não experimentou crise alguma. As pessoas estavam com fome e precisavam de comida. Era um pedido legítimo.

Desde então, porém, eles experimentaram dois grandiosos momentos da revelação no Monte Sinai e a construção do Tabernáculo. Eles tinham chegado mais perto de Deus do que qualquer outra nação jamais havia conseguido antes. Nem mesmo eles estavam morrendo de fome. A queixa deles não era que eles não tinham comida. Eles tinham o maná. A reclamação deles era de que era chato: “Agora perdemos o apetite (literalmente,“ nossa alma está seca ”); nunca vemos nada além deste maná! (Ex 11,6). Eles alcançaram alturas espirituais, mas permaneceram as mesmas pessoas recalcitrantes, ingratas e mesquinhas que eram antes.

Foi isso que fez Moisés sentir que sua missão inteira havia falhado e continuaria a falhar. Sua missão era ajudar os israelitas a criar uma sociedade que seria o oposto do Egito, que libertaria em vez de oprimir, dignificar os outros, não escravizar. Mas o povo não havia mudado. Pior: eles se refugiaram na nostalgia mais absurda do Egito que haviam deixado: lembranças de peixe, pepino, alho e o resto. Moisés descobriu que era mais fácil tirar os israelitas do Egito do que tirar o Egito dos israelitas. Se as pessoas não haviam mudado até agora, era razoável supor que nunca mudariam. Moisés estava encarando sua própria derrota. Não havia sentido em continuar.

Deus então o confortou. Primeiro, ele disse a ele para reunir setenta anciãos para compartilhar com ele os encargos da liderança; depois, disse-lhe para não se preocupar com a comida. As pessoas logo teriam carne em abundância. E veio então uma enorme avalanche de codornas.

O mais impressionante nesta história é que, depois disso, Moisés parece ser um homem mudado. Confrontado por Josué se estava acontecendo um desafio à sua liderança, ele responde: “Você está com ciúmes por mim? Queria eu que todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR colocasse Seu Espírito sobre eles” (Nm 11,29). No capítulo seguinte, quando seu próprio irmão e irmã começam a criticá-lo, ele reage com uma calma total. Quando Deus pune Miriam, Moisés reza em seu nome. É especificamente neste ponto do longo relato bíblico da vida de Moisés que a Torah então afirma: "Moisés era um homem muito humilde, mais do que qualquer outro homem na terra" (Nm 12,3).

A Torah nos está dando um relato notável da psicodinâmica da crise emocional. A primeira coisa que está nos dizendo é que é importante, em meio ao desespero, não ficar sozinho. Deus desempenha, Ele mesmo, o papel de Consolador. É Ele quem levanta Moisés da cova do desespero. Ele fala diretamente às preocupações de Moisés. Ele diz que não terá que liderar sozinho no futuro. Haverá outros para ajudá-lo. Então diz a ele para não ficar preocupado com a reclamação das pessoas. Em breve, elas teriam tanta carne que os deixaria doentes e não reclamariam da comida novamente.

O princípio essencial aqui é o que os sábios quiseram dizer quando disseram: "Um prisioneiro não pode se libertar da prisão". Precisa de alguém para tirá-lo da depressão. É por isso que aprendemos com a Bíblia em não deixar as pessoas sozinhas em momentos de máxima vulnerabilidade. Daí vêm os princípios de visitar os doentes e confortar os enlutados, incluindo os solitários (“o estrangeiro, o órfão e a viúva”) em celebrações festivas e oferecer hospitalidade - um ato considerado “maior do que receber a Shekiná”. Precisamente porque a depressão o isola dos outros, permanecer sozinho intensifica o desespero. O que os setenta anciãos realmente fizeram para ajudar Moisés não estava claro. Mas simplesmente estar lá com ele fazia parte da cura.

A outra coisa que está nos dizendo é que sobreviver ao desespero é uma experiência de transformação de caráter. É quando sua autoestima é transformada em pó que você, de repente, percebe que a vida não diz respeito sobre você. Diz respeito sobre os outros, sobre ideais, e um senso de missão ou vocação. O que importa é a causa, não a pessoa. É sobre isso que se trata a verdadeira humildade. Como C. S. Lewis dizia sabiamente: humildade não é pensar menos de si mesmo. É pensar menos em si mesmo.

Quando você chega a esse ponto, mesmo que tenha passado por experiências mais contundentes, fica mais forte do que jamais imaginou ser possível. Você aprendeu a não colocar sua autoimagem em risco. Você aprendeu a não pensar em termos de aparência. Foi isso que o rabino Yochanan quis dizer quando disse: "Grandeza é humildade". A grandeza é uma vida voltada para o exterior, de modo que o sofrimento de outras pessoas importa para você mais do que o seu. A marca da grandeza é a combinação de força e gentileza que está entre as forças mais curativas da vida humana.

Moisés acreditava que ele era um fracasso. Vale a pena lembrar toda vez que pensamos que somos fracassados. A jornada de Moisés do Desespero para uma auto aceitação da sua força que se apagava é uma das grandes narrativas psicológicas da Torá, um tutorial atemporal da Esperança.

Confira as seguintes passagens bíblicas e tente fazer um paralelo com as ideias que mais se destacaram nessa parasha:
Jo 14,16. 26 ; 2Cor 1,4; 2Cor 12,9

Que outras reflexões o texto sobre a Parashá Behaalotecha lhe fez pensar?
Outras perguntas surgiram?
Muitas vezes as perguntas que trazemos são mais importantes que as respostas provisórias que encontramos.


[1] https://rabbisacks.org/test-character-behaalotecha-5776/
[2] É claro que também o fez, mas Jó não era profeta e nem mesmo era judeu, de acordo com muitos comentaristas. O livro de Jó é sobre outro assunto, a saber: por que coisas ruins acontecem com pessoas boas? Essa é uma pergunta sobre Deus, não sobre a humanidade.