Kedoshim2


CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Parasha da Semana - Kedoshim – Lv 19,1 – 20,27

– Cristãos estudando as fontes judaicas –

SACKS, Rabbi Jonathan. Essays on Ethics, a Weekly Reading of the Jewish Bible. New York: Maggid Books, 2016, p. 189-193.

 

Do Sacerdote para o Povo

Algo de fundamental acontece no início da Parashá Kedoshim, e cuja história é uma das maiores, se não desconhecida, das contribuições do Judaísmo para o mundo.

Até agora o Livro do Levítico tem discursado largamente sobre sacrifícios, pureza, o Santuário, e o Sacerdócio. Tem sido, brevemente, um relato sobre um lugar santo, santas ofertas, e sobre a elite do santo povo – Aarão e seus descendentes – que ministram lá. De repente, no capítulo 19, o texto estende e alcança o povo inteiro e o todo da vida: “O SENHOR falou a Moisés: ‘Fala a toda a comunidade dos israelitas e dize-lhes: Sede santos, porque eu o SENHOR vosso Deus, sou santo’” (Lv 19,1-2).

Esta é a primeira e única vez em Levítico que tamanho e inclusivo destino é ordenado. Os sábios disseram que o conteúdo do capítulo foi proclamado por Moisés para a formação inteira do povo. É o povo como um todo que é ordenado para “ser santo”, não apenas a elite, os sacerdotes. É a vida mesma deles que é para ser santificada, como o capítulo discorre cada vez de forma mais clara. Santidade existe para ser manifestada no sentido de que a nação confecciona suas roupas e planta nos seus campos de tal modo que a justiça seja administrada, trabalhadores sejam pagos e comércios seja bem conduzidos. Qualquer pessoa vulnerável – o surdo, o cego, o de idade avançada, e o estrangeiro devem ter proteção especial. A sociedade inteira deve ser governada pelo amor, sem ressentimentos de vingança.

O que testemunhamos aqui, em outras palaveras, é a radical democratização da santidade. Todas as antigas sociedades tiveram sacerdotes. Nós encontramos na Torah quatro menções muito antigas de sacerdotes não-Israelitas: Melquisedeque, contemporâneo de Abraão, descrito como sacerdote do Deus Altíssimo; Potifar, o sogro de José; os sacerdotes egípcios como um todo aos quais José na terra não nacionalizou; e Jetro, sogro de Moisés, uma sacerdote madianita. O sacerdócio não havia somente em Israel, e em todos os locais era uma casta, uma elite. Aqui pela primeira vez encontramos um código de santidade dirigido ao povo como um todo. Todos somos chamados a ser santos.

De um modo diferente, contudo, isso não vem como surpresa. A ideia, se não presente toda em detalhes, já tinha sido sugerida. A mais explícita menção veio no início da grande celebração dos mandamentos no Monte Sinai, quando Deus diz a Moisés para dizer ao povo: “Agora se vocês me obedecerem e guardarem minha aliança, sereis para mim a porção escolhida entre todos os povos. Na realidade é minha toda a terra, mas vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,5-6), isto é um reino onde todos os membros existem no mesmo sentido dos sacerdotes, e a nação na sua globalidade é santa.

A primeira intimação é bem mais anterior, no primeiro capítulo de Gênesis, com sua afirmação monumental “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança...E assim Deus criou o ser humano na Sua imagem, na imagem de Deus Ele os criou, homem e mulher Ele os criou” (Gn 1, 26-27). O que é revolucionário na sua declaração não é de que um homem tenha sido criado à imagem de Deus. Isso era precisamente como os reis da Mesopotâmia nas cidades-estado e os faraós do Egito eram considerados. Eles eram vistos como representantes, imagens vivas, dos deuses. É daí que vem a sua autoridade. A dimensão revolucionária da declaração não é de que alguém somente, mas todos os seres humanos, partilham dessa dignidade. Sem considerar a classe, cor, cultura, credo, somos todos imagens e semelhanças de Deus.

Assim nasceu o aglomerado de ideias que, embora tenha levado milênios para ser realizado, levou à cultura distintiva do Ocidente: nenhuma negociação possível com a dignidade do ser humano, a ideia dos direitos humanos, e eventualmente as expressões políticas e econômicas dessas ideias – democracia liberal de um lado e o livro comércio do outro lado.

A questão essencial não é de que essas ideias tenham sido plenamente elaboradas na mente dos seres humanos durante o período da história bíblica. Decididamente não ocorreu assim. O conceito dos direitos humanos é um produto do século XVII. A Democracia não estava plenamente implantada até o século XX, mas já em Gênesis 1, a semente tinha sido plantada. Foi o que o presidente Thomas Jefferson quis expressar quando escreveu, “Deus que deu a vida para nós, nos deu a liberdade. E podem as liberdades de uma nação pensar estar seguras quando forem removidas as únicas bases sólidas, a convicção no pensamento do povo de que essas liberdades são presente de Deus?

A ironia é de que estes três textos – Gn 1, Ex 19,6 e Lv 19 são transmitidos todos pela voz sacerdotal daquilo que o Judaísmo chama de Torat Kohanim. Diante disse, os sacerdotes não eram iguais. Eles vinham de uma única tribo, os Levitas, e de uma única família, a de Aarão, dentro da tribo. Para nos assegurar, a Torah nos conta de que esta não foi a intenção original de Deus. Inicialmente era para ser o primogênito – aqueles que tinham sido salvos da décima praga – os que eram encarregados com a especial santidade dos ministros de Deus. Foi somente depois do pecado do Bezerro de Ouro, e na qual a tribo de Levi não participou, que a mudança foi feita. Mesmo assim, o sacerdócio teria sido uma elite, um papel reservado especialmente para os primogênitos homens que nascessem. Tão profundo é o conceito de igualdade inscrito dentro do monoteísmo que ela precisamente emerge da voz sacerdotal – da qual nós menos esperamos.

A razão é esta: religião no mundo antigo era, não acidentalmente mas essencialmente, uma defesa pela hierarquia. Com o desenvolvimento primeiro da agricultura e depois das cidades, o que surgiu foram sociedades altamente estratificadas com um moderador no topo, cercado por uma corte real, abaixo uma elite administrativa e na base uma massa analfabeta que de tempos em tempos era convocada para o exército, ou como tributo, uma força de trabalho usada na construção de edifícios monumentais.

O que mantinha a estrutura em ordem era uma doutrina elaborada de uma hierarquia celestial cujas origens foram narradas por mitos, cujo símbolo mais familiar e natural era o sol, cuja representação arquitetônica era a pirâmide ou zigurate, um edifício maciço largo na base e estreito no topo. Os deuses haviam lutado e estabelecido uma ordem de domínio e submissão. Rebelar-se contra a hierarquia terrena era desafiar a própria realidade. Essa crença era universal no mundo antigo. Aristóteles pensava que alguns nasciam para governar, outros para serem governados. Platão mesmo construiu um mito na sua República na qual explicava que as divisões de classe existiam  porque os deuses haviam feito algumas pessoas com ouro, outras com prata e outra com bronze. Essa era “nobre mentira” que tinha de ser contada se uma sociedade quisesse se proteger a si mesma de alguma divisão interna.

O monoteísmo remove por completo a base mitológica da hierarquia. Não existe ordem entre os deuses simplesmente porque não existem os deuses, existe um único Deus, criador de tudo. Alguma forma de hierarquia irá sempre existir: exércitos precisam de comandantes, filmes necessitam de diretores e orquestras precisam de maestro. Mas estas hierarquias são funcionais, não ontológicas. Por isso é ainda mais impressionante encontrar uma maior igualdade de sentimentos vindos do mundo dos sacerdotes, cuja função religiosa sim era um problema de nascimento.

O conceito de igualdade que encontramos na Torah especificamente e no Judaísmo em geral não é uma igualdade de riqueza: Judaísmo não é comunismo. Também não é uma igualdade de poder: Judaísmo não é anarquia. É fundamentalmente uma igualdade de dignidade. Todos nós somos cidadãos iguais na nação cujo soberano é Deus. Por isso, a elaborada política e estrutura econômica apresentada no livro do Levítico, organizada em torno do número sete, o sinal da santidade. A cada sétimo ano ocorre um tempo livre. A cada sete anos, a produção do campo pertence a todos; escravos Israelitas são libertados e os débitos apagados. A cada cincoenta anos, o ano seguinte do sétimo período de sete anos, a terra ancestral voltava para seus ancestrais proprietários. Deste modo as desigualdades que são o inevitável resultado da liberdade, são diminuídas. A lógica de todas essas medidas é a visão sacerdotal de que Deus, o Criador de tudo, é o verdadeiro dono de tudo: “As terras não se venderão a título definitivo, porque a terra é minha, e vós sois estrangeiros e meus residentes temporários” (Lv 25,23). Deus, portanto, tem o direito, não apenas o poder, de colocar limites para a desigualdade. Ninguém devia ter sua dignidade vilipendiada pela pobreza total, servidão perpétua, ou endividamento brutal.

O que é verdadeiramente importante, contudo é o que aconteceu depois do tempo bíblico e da destruição do Segundo Templo. Diante da perda de toda a infra-estrutura do sagrado – o Templo, seus sacerdotes, seus sacrifícios – o Judaísmo transferiu o inteiro sistema de avoda, serviço divino, para a  vida cotidiana comum judaica. Na oração, cada judeu se tornou um sacerdote oferecendo um sacrifício. No arrependimento, cada um se tornou  um sumo sacerdote, expiando pelos pecados próprios e pelos do seu povo. Cada Sinagoga, seja em Israel ou em qualquer outro lugar, tornou-se um fragmento do Templo de Jerusalém. Cada mesa se tornou um altar, cada ação de caridade ou hospitalidade um tipo de sacrifício.

O estudo da Torah, antes a especialidade do sacerdócio. Se tornou um direito e obrigação de cada um. Nem todos poderiam usar a coroa do sacerdócio mas todos podem usar a coroa da Torah. Um estudioso da Torah bastardo de nascimento – disseram os sábios -  era maior do que um ignorante sumo-sacerdote. Para além da devastadora tragédia da perda do Templo, os sábios criaram uma religião e ordem social que trouxe para mais perto o ideal de um povo entendido como “reino de sacerdotes e nação santa” do que já tinha sido realizado anteriormente.

A semente tinha sido planta muito tempo atrás, na abertura do capítulo 19 de Levítico: “O SENHOR falou a Moisés: ‘Fala a toda a comunidade dos israelitas e dize-lhes: Sede santos, porque eu o SENHOR vosso Deus, sou santo’” (Lv 19,1-2).

A Santidade pertence a todos nós quando nós voltamos nossas vidas para o Serviço de Deus e da sociedade fazemos um lar para a Divina Presença. Essa é a vida moral vivida pelo reino dos sacerdotes: um mundo que anseia por estar mais próximo de Deus tornando-se próximo, em justiça e amor, para os outros seres humanos.

Para avançar na reflexão e na teologia da continuidade das Sagradas Escrituras

  1. Confira as seguintes citações bíblicas: Rm 1,4; Ef 4,24; 1Ts 3,13; 1Ts 4,4.7; 1Tm 2,15; Hb 12,10.14 e depois  procure relacionar com o mandamento da santidade. A santidade é possível, viável no mundo de hoje?