O sonho de Jaco Gn 28

Vayetze  - (Gn 28, 10 – 32,3):

Uma cantora do nosso tempo, escreveu: “Há uma rachadura em tudo. É por ali que a luz entra”. O coração alquebrado deixa entrar a luz Divina, e se torna a porta dos céus.
POR RABINO JONATHAN SACKS – LIKUTEI MAHARAN 2:2

Texto original: “How The Light Gets In”
Tradução: Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

Por que Jacó? Essa é a pergunta que fazemos repetidamente à medida que lemos as narrativas de Bereshit (Gênesis).

Jacó não é o que foi Noé: justo, perfeito em sua geração, aquele que andou com Deus. Ele não fez como Abraão, saiu de sua terra, o lugar onde nasceu e da casa de seu pai em resposta a um chamado Divino. Ele não se ofereceu como sacrifício, como fez Isaac. Ele também não tem o sentido fervoroso de justiça e a vontade de intervir que vemos nas cenas do início da vida de Moisés.

Ainda assim, nós somos definidos todo o tempo como os descendentes de Jacó, os filhos de Israel. Daí a força da pergunta: Por que Jacó?

Parece-me que a resposta está inserida sutilmente no início da parashá desta semana. Jacó estava no meio de uma viagem, indo de um perigo para outro. Ele havia partido de sua casa porque Esaú havia jurado matá-lo quando seu pai morresse. Estava prestes a entrar na casa de seu tio Labão, o que iria, em si, apresentar outros perigos. Longe de casa, sozinho, ele estava em um ponto máximo de vulnerabilidade.

O sol se põe. A noite cai. Jacó se deitou para dormir, e então viu essa visão majestosa: Ele sonhou que havia uma escada posta na terra, cujo topo atingia o céu; e anjos de Deus subiam e desciam por ela. E Deus estava ao lado dele e disse: “Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, e o Deus de Isaac; a terra em que estás deitado, Eu a darei a ti e à tua descendência; e a tua descendência será como o pó da terra, e você se espalhará para o oeste e para o leste, para o norte e para o sul; e todas as famílias da terra serão abençoadas por seu intermédio e através de sua prole. E veja, eu estou com você e irei mantê-lo onde quer que você vá, e lhe trarei de volta a essa terra; pois eu não te deixarei até que tenha cumprido o que te prometi”.

Então Jacó acordou de seu sono e disse: “Certamente Deus está neste lugar, e eu não sabia disso!” E, com temor e reverência, disse: “Como é fascinante este lugar! Este lugar não é outro senão a casa de Deuss, e esta é a porta dos céus” (Gn 28,12-17).

Observe a repetição quadrupla da expressão “e veja”, em hebraico ve-hinê, uma expressão de surpresa. Nada preparou Jacó para esse encontro, um ponto enfatizado em suas próprias palavras quando ele diz: “o Senhor está neste lugar - e eu não sabia”. O próprio verbo usado no início da passagem: “Ele se deparou com um lugar”, em hebraico vayifga ba-makom, também significa um encontro inesperado.

Mais tarde, a palavra ha-Makom , “o Lugar" passou a significar “Deus”. Por isso, de uma forma poética, a frase vayifga ba-makom poderia ser lida como “Jacó teve um encontro inesperado com Deus”. Acrescente a isso a noite de embate de Jacó com o anjo, na parashá da próxima semana, e temos uma resposta à nossa pergunta.

Jacó é o homem que tem as suas mais profundas experiências espirituais sozinho, à noite, em face do perigo e longe de casa. Ele é o homem que se encontra com Deus quando ele menos espera, quando sua mente está em outras coisas, quando ele está amedrontado e, possivelmente, à beira do desespero. Jacó é o homem que, no meio da viagem, descobre que “Certamente o Senhor está neste lugar, e eu não sabia disso”!

Jacó tornou-se assim o pai do povo que teve seu encontro mais próximo com o Criador, no que Moisés mais tarde descreveu como “o uivo do deserto inabitado” (Dt 32,10).

Excepcionalmente, os judeus sobreviveram a toda uma série de exílios, e embora no início eles tivessem dito: “Como podemos cantar a canção do Senhor em terra estranha?”, eles descobriram que a Shechiná, a presença Divina, ainda estava com eles. Abraão deu aos judeus a coragem de desafiar os ídolos da época. Isaac deu-lhes a capacidade de auto sacrifício. Moisés ensinou-lhes a ser combatentes apaixonados pela justiça. Mas Jacó deu-lhes o conhecimento de que, precisamente quando você se sente mais sozinho, Deus ainda está com você, dando-lhe a coragem de manter esperança e força para sonhar.

O homem que deu a mais profunda expressão poética a isso foi, sem dúvida, David no livro de Salmos. A todo momento ele chama Deus do coração das trevas, aflito, sozinho, sofrido, amedrontado:
“Salva-me, ó Deus, Pois as águas chegaram até o pescoço. Mais e mais profundamente eu afundo na lama; não consigo encontrar um ponto de apoio. Estou em águas profundas, E as inundações me oprimem (Sl 69,2-3)”

“Das profundezas, ó Senhor, Eu chamo pela vossa ajuda (Sl 130,1). Às vezes, nossas experiências espirituais mais profundas vêm quando menos esperamos, quando estamos mais próximos do desespero. É então que as máscaras que usamos são arrancadas. Estamos no ponto máximo de vulnerabilidade - e é quando estamos totalmente abertos a Deus, e Deus está mais totalmente aberto para nós. “O Senhor está perto daqueles que estão abatidos e salva os que estão de espírito esmagado” (Sl 34,18).

“Meu sacrifício, ó Deus, é um espírito quebrado; um coração abatido e contrito, Você, ó Deus, não desprezarás” (Sl 51,17). Deus “cura os corações alquebrados e cicatriza as suas feridas” (Sl 147,3).

Rav Nahman de Breslav costumava dizer: “A pessoa precisa chorar ao seu Pai no céu com uma voz poderosa das profundezas do seu coração. Então, Deus vai ouvir a sua voz e se voltar para o seu clamor. E pode ser que a partir desse ato, em si, todas as dúvidas e obstáculos que estão impedindo-o de voltar ao verdadeiro serviço a Deus, o deixarão e serão completamente anulados” (1) (LM2 46). Nós encontramos Deus não apenas em lugares santos ou familiares, mas também no meio de uma viagem, sozinhos à noite. “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum porque Tu estás comigo”.

A mais profunda de todas as experiências espirituais, a base de todas as outras, é o conhecimento de que não estamos sozinhos. Deus está nos segurando pela mão, protegendo-nos, nos levantando quando caímos, nos perdoando quando falhamos, curando as feridas em nossa alma através do poder do Seu amor.

Meu falecido pai, de abençoada memória, não era um erudito judeu. Ele não teve a chance de se tornar um. Ele veio para a Grã-Bretanha quando criança e como refugiado. Ele teve que deixar a escola ainda muito jovem e, além disso, as possibilidades de educação judaica naquela época eram limitadas. A maior parte do tempo da família era usado apenas para a sobrevivência. Mas eu o vi andar de cabeça erguida como um judeu, sem medo, até mesmo com ar de desafio às vezes, porque quando ele orava ou lia os Salmos ele sentia intensamente que Deus estava com ele.

Essa fé simples deu-lhe imensa dignidade e força de espírito. Essa foi a sua herança de Jacó, assim como é a nossa. Embora outros possam cair, nós caímos nos braços de Deus. Embora outros possam perder a fé em nós, e embora possamos perder a fé em nós mesmos, Deus nunca perde a fé em seu povo. E embora possamos nos sentir completamente sós, nós não estamos sozinhos. Deus está ali, ao nosso lado, dentro de nós, exortando-nos a levantar e seguir em frente, pois há uma tarefa para ser cumprida, que ainda não foi, e para a qual fomos criados para cumprir.

Uma cantora do nosso tempo, escreveu: “Há uma rachadura em tudo. É por ali que a luz entra”. O coração alquebrado deixa entrar a luz Divina, e se torna a porta dos céus.

POR RABINO JONATHAN SACKS – LIKUTEI MAHARAN 2:2